Em
1725, Johann Sebastian Bach se preparava para compor sua cantata
número 1 em si bemol maior, na igreja luterana de São Tomás, em
Leipzig, onde mantinha uso exclusivo e solitário do grande órgão
adquirido pelo arcebispo de Leipzig, a seu pedido, dezoito anos
antes, diretamente de um fabricante que por ali passara e comentara a
existência do órgão, quando ocorreu um grave problema. Bach já
sofria de cegueira quase completa, que uns diziam provir de diabetes
mal tratada, mas outros mais maldosos garantiam ser efeito do fato de
ele ter copiado as partituras de seu irmão 21 anos antes, no escuro.
Mas isso pouco se comentava, porque todos testemunhavam a descida
corpórea de anjos quando Johann se sentava ao órgão para tocar aos
domingos e também, até mesmo, a presença de um pequeno anjo loiro
quando ele havia começado a ensaiar uma nova fuga. O problema foi
que Bach percebeu que uma das notas de uma frase musical da cantata
teimava em não se completar. Sempre que ele começava a tocar a
frase que martelava em sua cabeça, o órgão se recusava a soar
aquela nota. Ele a tocava, mas, de alguma forma misteriosa, o som
emitido era diferente. Da mesma maneira, a própria concepção da
frase em sua imaginação e a correspondência mental da melodia
estacavam exatamente naquela nota. Tratava-se de um si bemol, disso
ele sabia. Pensou em modificar a nota, mas não era possível, pois a
nota teimava em ser tocada e era certamente a mais exata para a
cantata como Bach a concebera, ainda na noite anterior, durante mais
um dos acessos de insônia que vinha tendo havia algumas semanas. O
músico revirou o órgão por dentro, sentou-se, esperou, mas tudo
continuava intocado, e o instrumento guardava-se com uma perfeição
cada vez maior, quanto mais era tocado pelo emissário único dos
anjos da esfera intermediária. Esses anjos intermediários, que
habitavam uma porção, como diz o nome, mediana das esferas
celestes, eram responsáveis pelas coisas terrenas que permitiam aos
homens conhecer brevemente alguns enigmas do céu. Não pertenciam às
camadas superiores, responsáveis pelos assuntos propriamente
celestes, nem às totalmente inferiores, que se encarregavam de
problemas estritamente mundanos, como doenças e afogamentos.
Contrariado e ansioso, pois a cantata deveria ser apresentada dali a
dois dias, quando a igreja contaria com a presença do arcebispo de
Leipzig em pessoa, Bach tornou a sua casa, onde nada parecia
acalmá-lo. Teimava em repetir aquele si bemol que, por sua vez,
resistia a soar a contento. Em sua pequena biblioteca, com a ajuda do
filho mais novo, Bach alcançou um volume antigo, cópia apócrifa de
um manuscrito cujo original se encontrava guardado na Biblioteca
Central do Vaticano. Tratava-se de uma reprodução dos originais de
Guido d’Arezzo, escritos ainda no século X, sobre a marcação das
notas musicais. Mais uma vez, depois de tantas que já havia folheado
aquelas páginas, o músico se debruçou sobre os nomes das notas.
Releu o Hino a São João Batista, de onde Guido havia
extraído os nomes das notas ut, ré, mi, fá, sol e lá. Ut
queant laxis — Para que nós, teus servos; Resonare fibris
— possamos elogiar claramente; Mira gestorum — a força
dos teus atos; Famuli tuorum — e teus milagres; Solve
polluti — absolve a impureza; Labii reatum — de nossos
lábios. Como em todas as outras vezes, o músico se emocionava com a
precisão das palavras que praticamente justificavam a existência da
música; um elogio claro à força e ao milagre de Deus e a mais
perfeita absolvição de nossas impurezas. Rezou a Guido e,
temerariamente, também a Deus e a outros anjos de sua predileção,
a fim de que o iluminassem para que a nota teimosa se decidisse por
soar harmoniosamente. Pela primeira vez, Johann percebeu, então, e
para sua incompreensível surpresa, que, nas notações musicais de
Guido, faltava justamente a correspondência para a nota si. Como
isso poderia ter lhe escapado? Percebeu que, caso encontrasse a
origem pia da nota, encontraria também a chave para sua recusa em
soar. Passou o resto do dia revirando insatisfatoriamente seus outros
manuscritos e ainda brigou com seu filho Wilhelm, que dizia,
acintosamente, saber a origem oculta da nota. À noite, entre sonhos
fragmentados e sempre afetados pela vigília, entreviu uma resposta.
As letras iniciais de Sancte Iohannes formavam o si, a nota que
faltava. Foi direto ao cravo de seu quarto e acreditou que,
finalmente, a nota soaria a contento. Não soou. Voltou à igreja
cabisbaixo, e já cruzava o átrio quando Wilhelm surgiu ofegante,
insistindo em lhe fornecer a resposta. Pediu-lhe que retomasse a
notação grega, ainda proveniente da teoria pitagórica, ligada às
esferas celestes e suas correspondências terrestres. Bach negou com
veemência aquele descaramento pagão e mandou Wilhelm de volta para
casa. Entretanto, ao voltar ao órgão, diante de mais uma recusa
renitente da nota, sacou de uma pena que mantinha guardada no bolso
de seu casaco e experimentou anotá-la segundo as regras do grego
antigo. Desenhou: uma reta vertical do lado esquerdo, acoplada a dois
semicírculos que a preenchiam lateralmente. Não conhecia o
significado desse símbolo, mas sabia configurá-lo. Desenhou e
imediatamente voltou ao órgão. A nota soou clara como se nunca
tivesse resistido. O músico, apesar da heresia e diante do pouco
tempo que restava para a apresentação, resolveu adotar a notação
e, no momento de dar o nome à cantata, ainda ousou nomeá-la em
homenagem àquela nota profana, que se intrometera na melodia
contrapontística da fé cristã. Chamou-a Cantata em si bemol
maior, ou, segundo sua própria anotação, Cantata em B bemol
maior. Assim, com uma intervenção pitagórica das esferas
cósmicas em meio à devoção piedosa das notas cristãs, nasceu a
letra B, que se mantém até os dias de hoje em coisas e seres
religiosos e profanos, como as bétulas, os bichos e as bolas.
Noemi
Jaffe, in A verdadeira história do alfabeto
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