Um dos poemas mais
bonitos da língua portuguesa é a “Elegia” que a Cecília
Meireles escreveu para sua avó morta, Jacinta Garcia Benevides. Não
sei quantas vezes o li. Não sei quantas vezes o lerei. Ele começa
assim: “Minha primeira lá grima caiu dentro dos teus olhos.
Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído. No dia
seguinte estavas imóvel, modelada pela noite, pelas estrelas, pelas
minhas mãos... Neste mês, as cigarras cantam e os trovões caminham
por cima da terra, agarrados ao sol. Mas tudo é inútil, porque
estás encostada à terra fresca e as tuas mãos não se arredondam
já para a colheita e nem para a carícia...”.
Eu quero ser
cremado. A razão pode ser tola. Mas é que tenho claustrofobia. Sei
que estarei morto naquele momento, mas não estou morto neste momento
em que me imagino fechado no escuro. Neruda disse que os poetas são
feitos de fogo e fumaça. Cremado, nada poderá me prender. Eu me
transformarei em fogo e fumaça e subirei na direção dos céus. Por
outro lado, é preciso não se esquecer da pergunta de T. S. Eliot:
“E o cadáver que você plantou no seu jardim, já começou a
brotar?”. Pode ser que cada sepultura seja um jardim! Penso, então,
em combinar a terra, o fogo e a fumaça. Cremado me transformarei em
cinza que será colocada ao pé de um caquizeiro que produzirá
caquis vermelhos...
Na minha opinião,
a “Elegia” deveria ter sido lida inteira juntamente com os textos
sagrados do cerimonial do sepultamento da “Vozinha” nos seus 97
anos! Seu corpo ficaria mais leve. O corpo da Vozinha já estava leve
e branco como as nuvens — bastaria uma brisa para levá-lo.
O seu nome era
Alice. Foi um longo tempo de espera. Há sementes que demoram muito a
brotar. Não sabíamos onde ela estava. Sim, nós a víamos na cama.
Mas será que ela estava mesmo na cama? Aquela proximidade visível
escondia uma distância invisível que não podia ser medida. Estaria
andando por lugares que não conseguíamos ver? O seu silêncio
impenetrável nada dizia sobre o mistério. O que a Cecília disse de
sua avó também poderia ser dito dela: “Tudo em ti era uma
ausência que se demorava: uma despedida pronta a cumprir-se...”.
Aquele corpo transparente era a presença de uma ausência. Uma
despedida pronta a cumprir-se? Alguns de nós suspeitávamos, ao
contrário do que disse a Cecília, que aquela era uma despedida que
não queria cumprir-se. Queria adiar... Porque ela amava muito a
vida.
Era uma linda
mulher quando jovem. Mas o tempo passou, o horizonte se aproximou, e
a sua sensibilidade se tornou mais intensa. Apaixonada por flores,
entregava seus olhos aos ipês, aos flamboyants, às paineiras, às
sibipirunas. Amava as gloxínias e dizia em alemão, a primeira
língua que aprendeu:
“Die Welt ist so
schon! Aber Ich muss scheiden…”. O mundo é tão bonito. Mas eu
tenho de partir...
Amava os cães,
seus companheiros de vida inteira.
Seus olhos
brilhavam quando aparecia a jarrinha de caipirinha bem doce...
Melado com farinha
de milho — coisa que só gente da roça e que viveu em fazenda
aprecia.
Olhava e só de
olhar ela dizia: Que gostoso...
Mas todo velório
tem dois lados.
O primeiro lado é
esse, formado pelos que contemplam o morto, sentem saudades e choram.
O segundo lado somos nós, que olhamos uns para os outros e nos
perguntamos: “A minha morte, até onde ela terá entrado?”.
Rubem Alves,
in Pimentas: para
provocar um incêndio, não é preciso fogo
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