Ele chegou a
galope, num alazão que eu não conhecia. Depois o alazão ergueu-se
em duas patas e desapareceu e meu irmão também desapareceu. Fazia
tempo que eu o chamava e ele não vinha. Chamava e não o encontrava.
E ontem fui para o monte e ele veio e me falou como antes, só que no
ouvido.
Eu cuido, para ele,
das coisas que ele deixou. Escondi as coisas para que ninguém mexa
nelas. A atiradeira, a vara de pescar, o tambor, o revólver de
madeira, os preguinhos de fazer anzol. Tenho tudo isso escondido e,
quando ele vem, sempre me pergunta pelas suas coisas. Eu tenho medo
da gente que passa e prefiro não sair. Volto da roça ou de carpir a
horta e fico aqui trancado, no escuro, cuidando das coisas para ele.
Quando acendem a lâmpada de querosene fecho os olhos, mas deixo eles
um pouquinho abertos e a lâmpada vira uma linha brilhante e toda
peluda de luz. E às vezes converso com meu amigo que não sabe falar
porque é o cachorro. Converso, para não dormir. Sempre que durmo,
morro.
Já vão para cinco
longos anos que em cima do Mingo veio aquele caminhão na estrada.
Estava cuidando das duas vacas que nós tínhamos. Eu teria defendido
meu irmão, se estivesse lá com minha espada amarela. E foi nesse
dia que fiquei sem vontade de brincar, e para nunca mais. Fiquei sem
vontade de nada. Porque eu e o Mingo sempre andávamos ao meio-dia
como lagartos, e íamos pescar e caçar passarinhos. Mas, depois, não
brinquei mais. Perdeu a graça.
Para mim, o que
aconteceu com ele foi mau-olhado. Alguém chegou e pôs um mau-olhado
nele, justo quando ele estava com a barriga vazia e depois veio o
caminhão e o esmagou. Nos gringos, nunca pega o mau-olhado, me
contaram. É que a gente daqui, de Pueblo Escondido, a gente grande,
tem a vista muito forte demais. Aqui, toda a gente grande é má. Os
grandes batem. Me batem quando digo que posso conversar com o Mingo
sempre que quero, até hoje. Não deixam nem eu falar o nome dele.
Por isso, nunca
falo dele. Aqui em Pueblo Escondido, eu não falo. Quando aconteceu
aquilo, eu peguei e meti na cara a máscara que o Mingo tinha feito
para mim no carnaval, que era um diabo com chifres de trapo e a barba
de verdade, e meti a máscara na cara para que ninguém soubesse que
era eu, e me atirei com a bicicleta do Ivan turco a toda velocidade
contra a barranqueira, me atirei barranqueira abaixo, para me
arrebentar lá embaixo contra o lixo. Mas deu tudo errado porque eu
caí certo e não aconteceu nada. E aí me bateram. E eu fiquei a
noite inteira tremendo e de manhã acordei todo mijado e me enfiaram
num barril de água gelada. Me deixaram na água gelada e eu não
chorei nem pedi que me tirassem. E, na primeira vez que meu irmão
apareceu, eu peguei e contei tudo para ele.
Eu contava tudo
para ele. Contei que andávamos comendo laranjas verdes porque não
havia outra coisa. E então mamãe vendeu as vacas e um dia me deu
dinheiro para ir comprar açúcar para enchermos bem a barriga,
porque quando se come pouco a barriga se fecha e fica pequenininha e
então a gente tem que enchê-la para depois pôr comida. E eu meti o
dinheiro no bolso de trás, que estava furado, e essa vez também me
bateram.
Quando vou para o
morro esperar o Mingo, tenho medo que as pessoas me descubram. E
tenho medo dos urubus. Tenho medo também dos buracos, porque há
muitas armadilhas no morro e o diabo tem sua casa no fundo da terra.
É preciso tomar cuidado para não cair no fundo do mundo. E também
tenho medo da tempestade. Começam a cair em cima as primeiras gotas
gordas de chuva, e já saio em disparada. Tenho medo das tempestades
porque são muito brancas.
Estando meu irmão,
é diferente. Estando ele, não tenho medo de nada.
Ontem subi num
braço de árvore e fiquei fumando e esperando. Eu estava certo que
ele não ia falhar. E o Mingo apareceu a galope, bem no meio da
imensa nuvem de pó, quando só restava um pouco de sol no céu. Ele
me pediu para chegar mais perto, me fez sinais com o braço, e eu
desci e embaixo de um espinheiro ele me contou um segredo. O ar do
morro tinha cheiro de laranjas maduras. Não desceu do alazão.
Abaixou o corpo, e só. E me disse que eu vou ter dinheiro e vou
pegar e comprar um caminhão para mim e encher o caminhão de palha e
barba de milho para ter o que fumar para sempre. E vou embora. E vou
para o mar.
O Mingo me disse
que passando o horizonte fica o mar e que eu nasci para ir embora.
Para ir, para isso nasci. Pega o caminhão e vai embora, ele me
disse. E aqueles que não gostem disso, você passa por cima com o
caminhão. Quer dizer que eu vou embora. Para o mar. E levo todas as
coisas do meu irmão. Monto no caminhão e antes do mar eu não paro.
Do mar sim, eu não tenho medo. O mar estava me esperando e eu não
sabia. Como será? Como será o mar? – perguntei ao meu irmão.
Como será muita água junta? E o mar respira? E responde quando lhe
perguntam? Tanta água no mar! E não escapa, essa água do mar?
Eduardo Galeano,
in Vagamundo
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