Qualquer pessoa que
tenha tido bastante contato com livres-pensadores de países
diferentes e antecedentes diversos deve ter se surpreendido com a
diferença notável entre aqueles de origem católica e os de origem
protestante, por mais que possam imaginar ter se livrado da teologia
que lhes foi ensinada na juventude. A diferença entre protestantes e
católicos é tão marcada entre os livres-pensadores quanto entre os
crentes; de fato, talvez seja mais fácil descobrir as diferenças
essenciais, já que não estão escondidas atrás das ostensivas
divergências de dogma. Há, é claro, uma dificuldade: a maior parte
dos ateus protestantes é inglesa ou alemã, ao passo que a maior
parte dos católicos é francesa. E aqueles ingleses que, assim como
Gibbon, tiveram contato íntimo com o pensamento francês, adquirem
as características dos livres-pensadores franceses, apesar de sua
origem protestante. Ainda assim, a ampla diferença persiste, e pode
ser divertido empenhar-se em descobrir no que ela consiste.
Pode-se tomar James
Mill como um livre-pensador protestante típico, como aparece na
autobiografia de seu filho. “Meu pai”, diz John Stuart Mill,
“educado no credo do presbiterianismo escocês, foi, por seus
próprios estudos e reflexões, levado desde muito cedo a rejeitar
não apenas a crença na Revelação, mas os fundamentos do que
comumente é chamado de Religião Natural. A rejeição de meu pai a
tudo aquilo que se chama crença religiosa não era, como muitos
podem supor, primariamente uma questão de lógica e evidência: suas
bases eram morais, até mais do que intelectuais. Ele achava
impossível acreditar que um mundo tão cheio de maldade fosse obra
de um Autor que combinasse poder infinito com a bondade e a virtude
perfeitas. (...) Sua aversão à religião, no sentido geralmente
atribuído ao termo, era do mesmo tipo que a de Lucrécio: ele a
considerava com os sentimentos devidos não ao mero delírio mental,
mas a um grande mal moral. Teria sido completamente inconsistente com
as ideias de obrigação de meu pai permitir que eu adquirisse
impressões contrárias a suas convicções e sentimentos em relação
à religião – e ele incutiu em mim, desde o início, que a maneira
como o mundo passou a existir era um assunto sobre o qual nada se
sabia.” Mesmo assim, não há dúvida de que James Mill continuou
sendo um protestante. “Ele me ensinou a ter o mais forte dos
interesses pela Reforma, como a maior e mais decisiva luta contra a
tirania sacerdotal, pela liberdade de pensamento.”
Em tudo isso, James
Mill simplesmente carregava consigo o espírito de John Knox. Ele era
um não conformista, embora de uma seita extrema, e guardava a
convicção moral e o interesse pela teologia que marcaram seus
predecessores. Os protestantes, no início, distinguiam-se de seus
oponentes por aquilo em que não acreditavam; abandonar mais um dogma
é, por conseguinte, simplesmente conduzir o movimento um passo à
frente. O fervor moral é a essência da questão.
Essa é apenas uma
das diferenças características entre a moralidade protestante e a
católica. Para o protestante, o homem excepcionalmente bom é aquele
que se opõe às autoridades e às doutrinas recebidas, como Lutero
na Dieta de Worms. A concepção protestante de bondade é algo
individual e isolado. Eu mesmo fui educado como protestante, e um dos
textos mais incutidos em minha mente juvenil foi “Não seguirás a
multidão para fazer o mal”. Tenho consciência até hoje de que
esse texto me influencia em minhas ações mais sérias. O católico
tem uma concepção bem diferente de virtude: para ele, em toda
virtude existe um elemento de submissão, não apenas à voz de Deus,
como é revelada na consciência, mas também à autoridade da Igreja
como depositária da Revelação. Isso dá ao católico uma concepção
de virtude muito mais social do que a do protestante e faz com que a
dor seja muito maior quando ele interrompe sua conexão com a Igreja.
O protestante que deixa a seita protestante específica em que foi
criado está fazendo apenas o que os fundadores daquela mesma seita
fizeram não há muito tempo, e sua mentalidade é adaptada à
fundação de uma nova seita. O católico, por outro lado, sente-se
perdido sem o apoio da Igreja. Ele pode, é claro, juntar-se a alguma
outra instituição, como a dos maçons, mas continua consciente,
mesmo assim, de uma revolta desesperada. E geralmente permanece
convencido, pelo menos de maneira inconsciente, de que a vida moral
se reserva aos membros da Igreja, de modo que, para o livre-pensador,
os tipos mais elevados de virtude se tornaram impossíveis. Essa
convicção o conduz a caminhos diferentes de acordo com seu
temperamento: se for de disposição alegre e despreocupada, desfruta
do que William James chama de férias morais. O exemplo mais perfeito
disso é Montaigne, que se permitiu férias intelectuais na forma de
hostilidade a sistemas e deduções. Os modernos nem sempre percebem
em que extensão o Renascimento foi um movimento anti-intelectual. Na
Idade Média, era costume experimentar as coisas; o Renascimento
inventou o hábito de observá-las. Os únicos silogismos com que
Montaigne simpatiza são aqueles que comprovam uma negativa
específica como, por exemplo, quando ele usa sua erudição para
demonstrar que nem todos aqueles que morreram como Arius eram
hereges. Depois de enumerar diversos homens maus que tinham morrido
assim ou de maneira parecida, ele prossegue: “Mas o quê! Irineu
encontra-se em fortuna semelhante: a intenção de Deus é nos
ensinar que os bons têm algo mais a esperar, e os maus, algo mais a
temer, do que a boa ou má fortuna deste mundo”. Algo dessa aversão
ao sistema permaneceu característica do livre-pensador católico, em
oposição ao protestante; a razão disso é que o sistema da
teologia católica é muitíssimo imponente, a ponto de não permitir
ao indivíduo estabelecer algum outro que rivalize com ele (a não
ser que possua força heroica).
O livre-pensador
católico, assim, tenta evitar a solenidade, tanto intelectual quanto
moral, ao passo que o livre-pensador protestante tem grande
inclinação para ambas. James Mill ensinou a seu filho que “a
pergunta ‘Quem me fez?’ não podia ser respondida, porque não
temos experiência nem informações autênticas com que respondê-la;
e que qualquer resposta só faz a dificuldade retroceder mais um
passo, já que a questão que imediatamente se apresenta é ‘Quem
fez Deus?’”. Comparemos com isso o que Voltaire tem a dizer a
respeito de Deus no Dicionário Filosófico. O artigo “Deus”,
naquela obra, começa da seguinte maneira: “Durante o reinado de
Arcádio, Logômaco, professor de teologia em Constantinopla, foi até
a Cítia e deteve-se ao sopé do Cáucaso, nas planícies férteis de
Zefirim, na fronteira da Cólchida. O velho e honrado Dondindaque
estava em sua ampla sala, entre seu grande aprisco e seu vasto
celeiro; estava ajoelhado em companhia da mulher, dos cinco filhos e
cinco filhas, seus pais e seus criados, e, depois de uma refeição
leve, estavam todos entoando preces a Deus”.
O artigo prossegue
no mesmo veio e encerra com a seguinte conclusão: “Desde então,
resolvi jamais discutir”. Não é possível imaginar uma época em
que James Mill tivesse resolvido não mais discutir, nem algum
assunto, mesmo que menos sublime, que ele pudesse ter ilustrado com
uma fábula. Nem que pudesse ter praticado a arte da irrelevância
habilidosa, como Voltaire faz quando fala de Leibniz: “Ele
declarou, no Norte da Alemanha, que Deus só poderia criar um único
mundo”. Ou, então, comparemos o fervor moral com que James Mill
afirmou a existência do mal com a seguinte passagem, em que Voltaire
diz a mesma coisa: “Negar que existe o mal poderia ser dito em tom
de troça por um luculiano que goza de boa saúde e que faz um bom
jantar com os amigos e a amante no salão de Apolo; mas permita que
ele olhe através da janela e verá alguns seres humanos miseráveis;
permita que sofra de febre e ele mesmo se sentirá miserável”.
Montaigne e
Voltaire são os exemplos supremos de céticos alegres. Muitos
livres-pensadores católicos, no entanto, estão muito longe de ser
alegres, e sempre sentiram a necessidade de uma fé rígida e de uma
Igreja que os conduzisse. Alguns homens às vezes se tornam
comunistas; disso Lênin foi o exemplo supremo. Lênin adquiriu sua
fé de um livre-pensador protestante (porque os judeus e os
protestantes são indistinguíveis mentalmente), mas seus
antecedentes bizantinos o levaram a criar uma Igreja como a
corporificação visível da fé. Um exemplo menos bem-sucedido dessa
mesma tentativa é Auguste Comte. Homens com o seu temperamento, a
menos que tenham uma força sobre-humana, caem, cedo ou tarde, no
seio da Igreja. No domínio da filosofia, um exemplo muito
interessante é o sr. Santayana, que sempre adorou a ortodoxia por si
só, mas que ansiou por alguma forma intelectualmente menos
detestável do que a apresentada pela Igreja Católica. No
catolicismo, ele sempre apreciou a instituição da Igreja e sua
influência política; apreciava, de um modo geral, aquilo que a
Igreja tomara da Grécia e de Roma, mas não gostava do que ela tirou
dos judeus, inclusive, é claro, tudo aquilo que devia a seu
fundador. Ele poderia ter desejado que Lucrécio tivesse obtido
sucesso em fundar uma igreja baseada nos preceitos de Demócrito,
porque o materialismo sempre agradou a seu intelecto e, pelo menos em
suas primeiras obras, ele chegou mais perto de adorar a matéria do
que de conferir essa distinção a qualquer outra coisa. Mas, no fim
das contas, parece que passou a sentir que qualquer igreja que de
fato existisse deveria ser preferida a uma Igreja confinada ao
domínio da essência. O sr. Santayana, no entanto, é um fenômeno
excepcional, e dificilmente se encaixa em alguma de nossas categorias
modernas. É realmente um ser pré-renascentista e deve ser colocado,
se tanto, ao lado dos gibelinos que Dante encontrou sofrendo no
inferno por terem aderido às doutrinas de Epicuro. Esta visão é,
sem dúvida, reforçada pela nostalgia do passado que o contato
indesejado e prolongado com a América certamente devia produzir
sobre um temperamento espanhol.
Todos sabem como
George Eliot ensinou a F.W.H. Myers que Deus não existe e que ainda
assim devemos ser bons. Nisso, George Eliot é a típica
livre-pensadora protestante. Pode-se dizer, falando de maneira geral,
que os protestantes gostam de ser bons e inventaram a teologia para
manter-se assim, ao passo que os católicos gostam de ser maus e
inventaram a teologia para manter seus vizinhos bons. Por
conseguinte, o catolicismo tem caráter social e o protestantismo,
caráter individual. Jeremy Bentham, um livre-pensador protestante
típico, considerava o prazer da autoaprovação o maior de todos os
prazeres. Portanto, não sentia a tentação de comer ou de beber em
excesso, de ser culpado de vadiagem ou de roubar a carteira de seu
vizinho, porque nada disso lhe daria a emoção única que ele
compartilhava com Jack Horner, mas não em termos assim tão fáceis,
porque precisou abrir mão de sua torta de Natal para atingir seu
objetivo. Na França, por outro lado, foi a moralidade ascética que
caiu primeiro; a dúvida teológica apareceu mais tarde, e como
consequência. Essa distinção é provavelmente nacional, e não de
credos.
A conexão entre a
religião e a moral é algo que merece um estudo geográfico
imparcial. Lembro-me de que, no Japão, topei com uma seita budista
em que o sacerdócio era hereditário. Perguntei como isso podia
acontecer, já que os sacerdotes budistas em geral vivem no celibato;
ninguém soube me informar, mas pelo menos verifiquei os fatos em um
livro. Parecia que a seita tinha começado a partir da doutrina da
justificação pela fé, tendo deduzido que, desde que a fé
permanecesse pura, o pecado não importava; em consequência, os
sacerdotes resolveram todos pecar, mas o único pecado que os tentava
era o casamento. Daquele dia até hoje, os sacerdotes dessa seita têm
casado, mas, fora isso, vivido de maneira irrepreensível. Se fosse
possível fazer os norte-americanos acreditarem que o casamento é um
pecado, talvez eles não mais sentissem a necessidade do divórcio.
Talvez esteja na essência de um sistema social sábio classificar um
número determinado de ações inofensivas como “pecado”, mas
tolerar aqueles que as praticam. Dessa maneira, o prazer da maldade
pode ser obtido sem o prejuízo de ninguém. Isso me surgiu na
convivência com crianças. Toda criança deseja ser desagradável de
vez em quando, e, se foi educada de maneira racional, só poderá
satisfazer o impulso de ser desagradável por meio de alguma ação
realmente prejudicial, mas, se lhe ensinaram que é ruim jogar cartas
aos domingos ou, então, comer carne na sexta-feira, poderá
satisfazer seu impulso ao pecado sem prejudicar ninguém. Não estou
dizendo que eu ajo de acordo com esse princípio na prática; ainda
assim, o caso da seita budista que mencionei agora há pouco sugere
que talvez seja recomendável fazê-lo.
Nada adiantaria
insistir de maneira muito rígida na distinção que estamos tentando
estabelecer entre livres-pensadores protestantes e católicos; por
exemplo, os Enciclopedistas e filósofos do final do século XVIII
eram tipos protestantes, mas devo classificar Samuel Butler, ainda
que com certa hesitação, como um tipo católico. A principal
distinção que se nota é que, no tipo protestante, o afastamento da
tradição é principalmente intelectual, ao passo que, no tipo
católico, é principalmente prático. O típico livre-pensador
protestante não tem o menor desejo de fazer algo que seus vizinhos
possam condenar, a não ser a defesa de opiniões heréticas. Home
Life with Herbert Spencer (um dos livros mais agradáveis que
existem) menciona a opinião comum acerca desse filósofo, ou seja,
“Não há nada a ser dito a respeito dele, a não ser que tem um
bom caráter moral”. Não teria ocorrido a Herbert Spencer, a
Bentham, aos Mill ou a qualquer outro dos livres-pensadores
britânicos que defendiam em suas obras que o prazer é a finalidade
da vida – não teria ocorrido, repito, a nenhum desses homens
buscar o prazer por si próprios, ao passo que um católico que
chegasse às mesmas conclusões teria de se empenhar para viver de
acordo com elas. A esse respeito, precisa ser dito que o mundo está
mudando. O livre-pensador protestante de nossa época está apto a
tomar liberdades em suas ações e também em seus pensamentos, mas
isso é apenas um sintoma da decadência geral do protestantismo. Nos
bons e velhos tempos, um livre-pensador protestante seria capaz de
decidir-se abstratamente a favor do amor livre e, ainda assim, viver
cada dia de sua vida no mais rígido celibato. Penso que essa mudança
é lamentável. Grandes épocas e grandes indivíduos surgiram do
colapso de sistemas rígidos: os sistemas rígidos forneceram a
disciplina e a coerência necessárias, ao passo que seu colapso
providenciou a necessária energia. É um erro supor que os
resultados admiráveis conquistados no primeiro momento do colapso
possam prosseguir indefinidamente. Sem dúvida, o ideal é uma certa
rigidez de ação, somada a uma certa plasticidade de raciocínio,
mas isso é difícil de obter na prática, a não ser durante breves
períodos de transição. E parece provável que, se as antigas
ortodoxias entrarem em decadência, novos credos rígidos se
desenvolverão, pelas necessidades de conflito. Serão bolcheviques
ateus na Rússia que lançarão dúvidas sobre a divindade de Lênin
e inferirão que não constitui pecado amar os próprios filhos.
Haverá ateus do Kuomintang na China que terão reservas em relação
a Sun Yat-Sen e mal demonstrarão respeito por Confúcio. Temo que a
decadência do liberalismo torne cada vez mais difícil aos homens
não aderirem a algum credo contestador. É provável que os diversos
tipos de ateus tenham de se reunir em alguma sociedade secreta e
voltar aos métodos inventados por Bayle em seu dicionário. Há, ao
menos, este consolo: a perseguição à opinião exerce um efeito
admirável sobre o estilo literário.
Bertrand
Russell, in Por que não sou cristão
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