sábado, 11 de agosto de 2018

Sobre os céticos católicos e protestantes

Qualquer pessoa que tenha tido bastante contato com livres-pensadores de países diferentes e antecedentes diversos deve ter se surpreendido com a diferença notável entre aqueles de origem católica e os de origem protestante, por mais que possam imaginar ter se livrado da teologia que lhes foi ensinada na juventude. A diferença entre protestantes e católicos é tão marcada entre os livres-pensadores quanto entre os crentes; de fato, talvez seja mais fácil descobrir as diferenças essenciais, já que não estão escondidas atrás das ostensivas divergências de dogma. Há, é claro, uma dificuldade: a maior parte dos ateus protestantes é inglesa ou alemã, ao passo que a maior parte dos católicos é francesa. E aqueles ingleses que, assim como Gibbon, tiveram contato íntimo com o pensamento francês, adquirem as características dos livres-pensadores franceses, apesar de sua origem protestante. Ainda assim, a ampla diferença persiste, e pode ser divertido empenhar-se em descobrir no que ela consiste.
Pode-se tomar James Mill como um livre-pensador protestante típico, como aparece na autobiografia de seu filho. “Meu pai”, diz John Stuart Mill, “educado no credo do presbiterianismo escocês, foi, por seus próprios estudos e reflexões, levado desde muito cedo a rejeitar não apenas a crença na Revelação, mas os fundamentos do que comumente é chamado de Religião Natural. A rejeição de meu pai a tudo aquilo que se chama crença religiosa não era, como muitos podem supor, primariamente uma questão de lógica e evidência: suas bases eram morais, até mais do que intelectuais. Ele achava impossível acreditar que um mundo tão cheio de maldade fosse obra de um Autor que combinasse poder infinito com a bondade e a virtude perfeitas. (...) Sua aversão à religião, no sentido geralmente atribuído ao termo, era do mesmo tipo que a de Lucrécio: ele a considerava com os sentimentos devidos não ao mero delírio mental, mas a um grande mal moral. Teria sido completamente inconsistente com as ideias de obrigação de meu pai permitir que eu adquirisse impressões contrárias a suas convicções e sentimentos em relação à religião – e ele incutiu em mim, desde o início, que a maneira como o mundo passou a existir era um assunto sobre o qual nada se sabia.” Mesmo assim, não há dúvida de que James Mill continuou sendo um protestante. “Ele me ensinou a ter o mais forte dos interesses pela Reforma, como a maior e mais decisiva luta contra a tirania sacerdotal, pela liberdade de pensamento.”
Em tudo isso, James Mill simplesmente carregava consigo o espírito de John Knox. Ele era um não conformista, embora de uma seita extrema, e guardava a convicção moral e o interesse pela teologia que marcaram seus predecessores. Os protestantes, no início, distinguiam-se de seus oponentes por aquilo em que não acreditavam; abandonar mais um dogma é, por conseguinte, simplesmente conduzir o movimento um passo à frente. O fervor moral é a essência da questão.
Essa é apenas uma das diferenças características entre a moralidade protestante e a católica. Para o protestante, o homem excepcionalmente bom é aquele que se opõe às autoridades e às doutrinas recebidas, como Lutero na Dieta de Worms. A concepção protestante de bondade é algo individual e isolado. Eu mesmo fui educado como protestante, e um dos textos mais incutidos em minha mente juvenil foi “Não seguirás a multidão para fazer o mal”. Tenho consciência até hoje de que esse texto me influencia em minhas ações mais sérias. O católico tem uma concepção bem diferente de virtude: para ele, em toda virtude existe um elemento de submissão, não apenas à voz de Deus, como é revelada na consciência, mas também à autoridade da Igreja como depositária da Revelação. Isso dá ao católico uma concepção de virtude muito mais social do que a do protestante e faz com que a dor seja muito maior quando ele interrompe sua conexão com a Igreja. O protestante que deixa a seita protestante específica em que foi criado está fazendo apenas o que os fundadores daquela mesma seita fizeram não há muito tempo, e sua mentalidade é adaptada à fundação de uma nova seita. O católico, por outro lado, sente-se perdido sem o apoio da Igreja. Ele pode, é claro, juntar-se a alguma outra instituição, como a dos maçons, mas continua consciente, mesmo assim, de uma revolta desesperada. E geralmente permanece convencido, pelo menos de maneira inconsciente, de que a vida moral se reserva aos membros da Igreja, de modo que, para o livre-pensador, os tipos mais elevados de virtude se tornaram impossíveis. Essa convicção o conduz a caminhos diferentes de acordo com seu temperamento: se for de disposição alegre e despreocupada, desfruta do que William James chama de férias morais. O exemplo mais perfeito disso é Montaigne, que se permitiu férias intelectuais na forma de hostilidade a sistemas e deduções. Os modernos nem sempre percebem em que extensão o Renascimento foi um movimento anti-intelectual. Na Idade Média, era costume experimentar as coisas; o Renascimento inventou o hábito de observá-las. Os únicos silogismos com que Montaigne simpatiza são aqueles que comprovam uma negativa específica como, por exemplo, quando ele usa sua erudição para demonstrar que nem todos aqueles que morreram como Arius eram hereges. Depois de enumerar diversos homens maus que tinham morrido assim ou de maneira parecida, ele prossegue: “Mas o quê! Irineu encontra-se em fortuna semelhante: a intenção de Deus é nos ensinar que os bons têm algo mais a esperar, e os maus, algo mais a temer, do que a boa ou má fortuna deste mundo”. Algo dessa aversão ao sistema permaneceu característica do livre-pensador católico, em oposição ao protestante; a razão disso é que o sistema da teologia católica é muitíssimo imponente, a ponto de não permitir ao indivíduo estabelecer algum outro que rivalize com ele (a não ser que possua força heroica).
O livre-pensador católico, assim, tenta evitar a solenidade, tanto intelectual quanto moral, ao passo que o livre-pensador protestante tem grande inclinação para ambas. James Mill ensinou a seu filho que “a pergunta ‘Quem me fez?’ não podia ser respondida, porque não temos experiência nem informações autênticas com que respondê-la; e que qualquer resposta só faz a dificuldade retroceder mais um passo, já que a questão que imediatamente se apresenta é ‘Quem fez Deus?’”. Comparemos com isso o que Voltaire tem a dizer a respeito de Deus no Dicionário Filosófico. O artigo “Deus”, naquela obra, começa da seguinte maneira: “Durante o reinado de Arcádio, Logômaco, professor de teologia em Constantinopla, foi até a Cítia e deteve-se ao sopé do Cáucaso, nas planícies férteis de Zefirim, na fronteira da Cólchida. O velho e honrado Dondindaque estava em sua ampla sala, entre seu grande aprisco e seu vasto celeiro; estava ajoelhado em companhia da mulher, dos cinco filhos e cinco filhas, seus pais e seus criados, e, depois de uma refeição leve, estavam todos entoando preces a Deus”.
O artigo prossegue no mesmo veio e encerra com a seguinte conclusão: “Desde então, resolvi jamais discutir”. Não é possível imaginar uma época em que James Mill tivesse resolvido não mais discutir, nem algum assunto, mesmo que menos sublime, que ele pudesse ter ilustrado com uma fábula. Nem que pudesse ter praticado a arte da irrelevância habilidosa, como Voltaire faz quando fala de Leibniz: “Ele declarou, no Norte da Alemanha, que Deus só poderia criar um único mundo”. Ou, então, comparemos o fervor moral com que James Mill afirmou a existência do mal com a seguinte passagem, em que Voltaire diz a mesma coisa: “Negar que existe o mal poderia ser dito em tom de troça por um luculiano que goza de boa saúde e que faz um bom jantar com os amigos e a amante no salão de Apolo; mas permita que ele olhe através da janela e verá alguns seres humanos miseráveis; permita que sofra de febre e ele mesmo se sentirá miserável”.
Montaigne e Voltaire são os exemplos supremos de céticos alegres. Muitos livres-pensadores católicos, no entanto, estão muito longe de ser alegres, e sempre sentiram a necessidade de uma fé rígida e de uma Igreja que os conduzisse. Alguns homens às vezes se tornam comunistas; disso Lênin foi o exemplo supremo. Lênin adquiriu sua fé de um livre-pensador protestante (porque os judeus e os protestantes são indistinguíveis mentalmente), mas seus antecedentes bizantinos o levaram a criar uma Igreja como a corporificação visível da fé. Um exemplo menos bem-sucedido dessa mesma tentativa é Auguste Comte. Homens com o seu temperamento, a menos que tenham uma força sobre-humana, caem, cedo ou tarde, no seio da Igreja. No domínio da filosofia, um exemplo muito interessante é o sr. Santayana, que sempre adorou a ortodoxia por si só, mas que ansiou por alguma forma intelectualmente menos detestável do que a apresentada pela Igreja Católica. No catolicismo, ele sempre apreciou a instituição da Igreja e sua influência política; apreciava, de um modo geral, aquilo que a Igreja tomara da Grécia e de Roma, mas não gostava do que ela tirou dos judeus, inclusive, é claro, tudo aquilo que devia a seu fundador. Ele poderia ter desejado que Lucrécio tivesse obtido sucesso em fundar uma igreja baseada nos preceitos de Demócrito, porque o materialismo sempre agradou a seu intelecto e, pelo menos em suas primeiras obras, ele chegou mais perto de adorar a matéria do que de conferir essa distinção a qualquer outra coisa. Mas, no fim das contas, parece que passou a sentir que qualquer igreja que de fato existisse deveria ser preferida a uma Igreja confinada ao domínio da essência. O sr. Santayana, no entanto, é um fenômeno excepcional, e dificilmente se encaixa em alguma de nossas categorias modernas. É realmente um ser pré-renascentista e deve ser colocado, se tanto, ao lado dos gibelinos que Dante encontrou sofrendo no inferno por terem aderido às doutrinas de Epicuro. Esta visão é, sem dúvida, reforçada pela nostalgia do passado que o contato indesejado e prolongado com a América certamente devia produzir sobre um temperamento espanhol.
Todos sabem como George Eliot ensinou a F.W.H. Myers que Deus não existe e que ainda assim devemos ser bons. Nisso, George Eliot é a típica livre-pensadora protestante. Pode-se dizer, falando de maneira geral, que os protestantes gostam de ser bons e inventaram a teologia para manter-se assim, ao passo que os católicos gostam de ser maus e inventaram a teologia para manter seus vizinhos bons. Por conseguinte, o catolicismo tem caráter social e o protestantismo, caráter individual. Jeremy Bentham, um livre-pensador protestante típico, considerava o prazer da autoaprovação o maior de todos os prazeres. Portanto, não sentia a tentação de comer ou de beber em excesso, de ser culpado de vadiagem ou de roubar a carteira de seu vizinho, porque nada disso lhe daria a emoção única que ele compartilhava com Jack Horner, mas não em termos assim tão fáceis, porque precisou abrir mão de sua torta de Natal para atingir seu objetivo. Na França, por outro lado, foi a moralidade ascética que caiu primeiro; a dúvida teológica apareceu mais tarde, e como consequência. Essa distinção é provavelmente nacional, e não de credos.
A conexão entre a religião e a moral é algo que merece um estudo geográfico imparcial. Lembro-me de que, no Japão, topei com uma seita budista em que o sacerdócio era hereditário. Perguntei como isso podia acontecer, já que os sacerdotes budistas em geral vivem no celibato; ninguém soube me informar, mas pelo menos verifiquei os fatos em um livro. Parecia que a seita tinha começado a partir da doutrina da justificação pela fé, tendo deduzido que, desde que a fé permanecesse pura, o pecado não importava; em consequência, os sacerdotes resolveram todos pecar, mas o único pecado que os tentava era o casamento. Daquele dia até hoje, os sacerdotes dessa seita têm casado, mas, fora isso, vivido de maneira irrepreensível. Se fosse possível fazer os norte-americanos acreditarem que o casamento é um pecado, talvez eles não mais sentissem a necessidade do divórcio. Talvez esteja na essência de um sistema social sábio classificar um número determinado de ações inofensivas como “pecado”, mas tolerar aqueles que as praticam. Dessa maneira, o prazer da maldade pode ser obtido sem o prejuízo de ninguém. Isso me surgiu na convivência com crianças. Toda criança deseja ser desagradável de vez em quando, e, se foi educada de maneira racional, só poderá satisfazer o impulso de ser desagradável por meio de alguma ação realmente prejudicial, mas, se lhe ensinaram que é ruim jogar cartas aos domingos ou, então, comer carne na sexta-feira, poderá satisfazer seu impulso ao pecado sem prejudicar ninguém. Não estou dizendo que eu ajo de acordo com esse princípio na prática; ainda assim, o caso da seita budista que mencionei agora há pouco sugere que talvez seja recomendável fazê-lo.
Nada adiantaria insistir de maneira muito rígida na distinção que estamos tentando estabelecer entre livres-pensadores protestantes e católicos; por exemplo, os Enciclopedistas e filósofos do final do século XVIII eram tipos protestantes, mas devo classificar Samuel Butler, ainda que com certa hesitação, como um tipo católico. A principal distinção que se nota é que, no tipo protestante, o afastamento da tradição é principalmente intelectual, ao passo que, no tipo católico, é principalmente prático. O típico livre-pensador protestante não tem o menor desejo de fazer algo que seus vizinhos possam condenar, a não ser a defesa de opiniões heréticas. Home Life with Herbert Spencer (um dos livros mais agradáveis que existem) menciona a opinião comum acerca desse filósofo, ou seja, “Não há nada a ser dito a respeito dele, a não ser que tem um bom caráter moral”. Não teria ocorrido a Herbert Spencer, a Bentham, aos Mill ou a qualquer outro dos livres-pensadores britânicos que defendiam em suas obras que o prazer é a finalidade da vida – não teria ocorrido, repito, a nenhum desses homens buscar o prazer por si próprios, ao passo que um católico que chegasse às mesmas conclusões teria de se empenhar para viver de acordo com elas. A esse respeito, precisa ser dito que o mundo está mudando. O livre-pensador protestante de nossa época está apto a tomar liberdades em suas ações e também em seus pensamentos, mas isso é apenas um sintoma da decadência geral do protestantismo. Nos bons e velhos tempos, um livre-pensador protestante seria capaz de decidir-se abstratamente a favor do amor livre e, ainda assim, viver cada dia de sua vida no mais rígido celibato. Penso que essa mudança é lamentável. Grandes épocas e grandes indivíduos surgiram do colapso de sistemas rígidos: os sistemas rígidos forneceram a disciplina e a coerência necessárias, ao passo que seu colapso providenciou a necessária energia. É um erro supor que os resultados admiráveis conquistados no primeiro momento do colapso possam prosseguir indefinidamente. Sem dúvida, o ideal é uma certa rigidez de ação, somada a uma certa plasticidade de raciocínio, mas isso é difícil de obter na prática, a não ser durante breves períodos de transição. E parece provável que, se as antigas ortodoxias entrarem em decadência, novos credos rígidos se desenvolverão, pelas necessidades de conflito. Serão bolcheviques ateus na Rússia que lançarão dúvidas sobre a divindade de Lênin e inferirão que não constitui pecado amar os próprios filhos. Haverá ateus do Kuomintang na China que terão reservas em relação a Sun Yat-Sen e mal demonstrarão respeito por Confúcio. Temo que a decadência do liberalismo torne cada vez mais difícil aos homens não aderirem a algum credo contestador. É provável que os diversos tipos de ateus tenham de se reunir em alguma sociedade secreta e voltar aos métodos inventados por Bayle em seu dicionário. Há, ao menos, este consolo: a perseguição à opinião exerce um efeito admirável sobre o estilo literário.
Bertrand Russell, in Por que não sou cristão

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