sábado, 18 de agosto de 2018

Resta...

Comovo-me ao recordar do poema do Vinícius “O haver”. É um poema crepuscular. Ele contempla o horizonte avermelhado, volta-se para trás e faz um inventário do que sobrou. Fiquei com vontade de fazer algo parecido, sabendo que não sou Vinícius, não sou poeta, nada sei sobre métrica e rimas. E eu começaria cada parágrafo com a mesma palavra com que ele começou suas estrofes: Resta...
Resta a luz do crepúsculo, essa mistura dilacerante de beleza e tristeza. Antes que ele comece ao fim do dia, o crepúsculo começa na gente. O Miguelim menino já sentia assim: “O tempo não cabia. De manhã já era noite...”. Assim eu me sinto, um ser crepuscular. Um verso de Rilke me conta a verdade sobre a vida: “Quem foi que assim nos fascinou para que tivéssemos um ar de despedida em tudo o que fazemos?”.
Restam os amigos. Quando tudo está perdido, os amigos permanecem. Lembro-me da antiga canção de Carole King “You got a friend”: “Se você está triste, no fundo do abismo e tudo está dando errado, precisando de alguém que o ajude — feche os olhos e pense em mim. Logo logo estarei ao seu lado para iluminar a noite escura. Basta que você chame o meu nome... Você sabe que eu virei correndo pra ver você de novo. Inverno, primavera, verão ou outono, basta chamar que eu estarei ao seu lado. Você tem um amigo...”. Eu tenho muitos amigos que continuam a gostar de mim a despeito de me conhecerem. E tenho também muitos amigos que nunca vi.
Resta a experiência de um tempo que passa cada vez mais depressa. “Tempus Fugit”. “Quando se vê já são seis horas. Quando se vê já é sexta-feira. Quando se vê já é Natal. Quando se vê já terminou o ano. Quando se vê não sabemos por onde andam nossos amigos. Quando se vê já passaram cinquenta anos...” (Mário Quintana)
Resta um amor por nossa Terra, nossa namorada, tão maltratada por pessoas que não a amam. Meu deus mora nas fontes, nos rios, nos mares, nas matas. Mora nos bichos grandes e nos bichos pequenos. Mora no vento, nas nuvens, na chuva. Eu poderia ter sido um jardineiro... Como não fui, tento fazer jardinagem como educador, ensinando às crianças, minhas amigas, o encanto pela natureza.
Resta um Rubem por vezes áspero, com quem luto permanentemente e que, frequentemente, burlando a minha guarda, aflora no meu rosto e nas minhas palavras, machucando aqueles que amo.
Resta uma catedral em ruínas onde outrora moravam meus deuses. Agora ela está vazia. Meus deuses morreram. Suas cinzas, então, voaram ao vento.
Resta, na catedral vazia, a luz dos vitrais coloridos, o silêncio, o repicar dos sinos, o canto gregoriano, a música de Bach, de Beethoven, de Brahms, de Rachmaninoff, de Fauré, de Ravel...
Resta ainda, nos pátios da catedral arruinada, a música do Jobim, do Chico, de Piazzola...
Resta uma pergunta para a qual não tenho resposta. Perguntaram-me se acredito em Deus. Respondi com versos do Chico: “Saudade é o revés do parto. É arrumar o quarto para o filho que já morreu”. Qual é a mãe que mais ama? A que arruma o quarto para o filho que vai voltar ou a que arruma o quarto para o filho que não vai voltar? Sou um construtor de altares. É o meu jeito de arrumar o quarto. Construo meus altares à beira de um abismo escuro e silencioso. Eu os construo com poesia e música. Os fogos que neles acendo iluminam o meu rosto e me aquecem. Mas o abismo permanece escuro e silencioso.
Resta uma criança que mora nesse corpo de velho e procura companheiros para brincar. De que é que a alma tem sede? “De qualquer coisa como tudo que foi a nossa infância. Dos brinquedos mortos, das tias idas. Essas coisas é que são a realidade, embora já morressem. Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança” (Bernardo Soares ).
Resta um palhaço... Na véspera de minha volta ao Brasil, a jovem ruiva sardenta que havia sido minha aluna entrou na minha sala e me disse: “Sonhei com você. Sonhei que você era um palhaço”. E sorriu. Tenho prazer em fazer os outros rirem com minhas palhacices. O que escrevo, frequentemente, é um espetáculo de circo. Faço malabarismos com palavras. Pois a vida não é um circo?
Resta uma ternura por tudo o que é fraco, do pássaro de asa quebrada ao velho trôpego e surdo. Fui um adolescente fraco e amedrontado. Apanhei sem reagir. Cresceu então dentro de mim uma fera que dorme. Toda vez que vejo uma pessoa humilde e indefesa sendo humilhada por uma pessoa que se julga grande coisa, a fera acorda e ruge. Tenho medo dela.
Resta a minha fidelidade às minhas opiniões que teimo em tornar públicas, o que me tem valido muitas tristezas e sucessivos exílios. Mas sei que minhas opiniões, todas as opiniões, não passam de opiniões. Não são a verdade. Ninguém sabe o que é a verdade. Meu passado está cheio de certezas absolutas que ruíram com os meus deuses. Todas as pessoas que se julgam possuidoras da verdade se tornam inquisidoras. Por isso é preciso tolerância.
Resta uma tristeza de morrer. A vida é tão bonita. Não é medo. É tristeza mesmo. Lembro-me dos versos da Cecília, que sentia a mesma coisa. “E fico a meditar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega. O que será, talvez, até mais triste. Nem barcas e nem gaivotas. Apenas sobre humanas companhias. De longe o horizonte avisto, aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isso...”
Resta um medo do morrer — aquelas coisas que vêm antes que a morte chegue. Acho que as pessoas deveriam ter o direito de dizer, se quisessem: “É hora de partir...”. E partissem. Se Deus existe e se Deus é bondade, não posso crer que Ele ou Ela nos tenha condenado ao sofrimento, como última frase da nossa sonata. A última frase deve ser bela.
Resta quanto tempo? Não sei. O relógio da vida não tem ponteiros. Só se ouve o tique-taque... Só posso dizer: “Carpe Diem”— colha o dia como um morango vermelho que cresce à beira do abismo. É o que tento fazer.
Rubem Alves, in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo

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