Comovo-me ao
recordar do poema do Vinícius “O haver”. É um poema
crepuscular. Ele contempla o horizonte avermelhado, volta-se para
trás e faz um inventário do que sobrou. Fiquei com vontade de fazer
algo parecido, sabendo que não sou Vinícius, não sou poeta, nada
sei sobre métrica e rimas. E eu começaria cada parágrafo com a
mesma palavra com que ele começou suas estrofes: Resta...
Resta a luz do
crepúsculo, essa mistura dilacerante de beleza e tristeza. Antes que
ele comece ao fim do dia, o crepúsculo começa na gente. O Miguelim
menino já sentia assim: “O tempo não cabia. De manhã já era
noite...”. Assim eu me sinto, um ser crepuscular. Um verso de Rilke
me conta a verdade sobre a vida: “Quem foi que assim nos fascinou
para que tivéssemos um ar de despedida em tudo o que fazemos?”.
Restam os amigos.
Quando tudo está perdido, os amigos permanecem. Lembro-me da antiga
canção de Carole King “You got a friend”: “Se você está
triste, no fundo do abismo e tudo está dando errado, precisando de
alguém que o ajude — feche os olhos e pense em mim. Logo logo
estarei ao seu lado para iluminar a noite escura. Basta que você
chame o meu nome... Você sabe que eu virei correndo pra ver você de
novo. Inverno, primavera, verão ou outono, basta chamar que eu
estarei ao seu lado. Você tem um amigo...”. Eu tenho muitos amigos
que continuam a gostar de mim a despeito de me conhecerem. E tenho
também muitos amigos que nunca vi.
Resta a experiência
de um tempo que passa cada vez mais depressa. “Tempus Fugit”.
“Quando se vê já são seis horas. Quando se vê já é
sexta-feira. Quando se vê já é Natal. Quando se vê já terminou o
ano. Quando se vê não sabemos por onde andam nossos amigos. Quando
se vê já passaram cinquenta anos...” (Mário Quintana)
Resta um amor por
nossa Terra, nossa namorada, tão maltratada por pessoas que não a
amam. Meu deus mora nas fontes, nos rios, nos mares, nas matas. Mora
nos bichos grandes e nos bichos pequenos. Mora no vento, nas nuvens,
na chuva. Eu poderia ter sido um jardineiro... Como não fui, tento
fazer jardinagem como educador, ensinando às crianças, minhas
amigas, o encanto pela natureza.
Resta um Rubem por
vezes áspero, com quem luto permanentemente e que, frequentemente,
burlando a minha guarda, aflora no meu rosto e nas minhas palavras,
machucando aqueles que amo.
Resta uma catedral
em ruínas onde outrora moravam meus deuses. Agora ela está vazia.
Meus deuses morreram. Suas cinzas, então, voaram ao vento.
Resta, na catedral
vazia, a luz dos vitrais coloridos, o silêncio, o repicar dos sinos,
o canto gregoriano, a música de Bach, de Beethoven, de Brahms, de
Rachmaninoff, de Fauré, de Ravel...
Resta ainda, nos
pátios da catedral arruinada, a música do Jobim, do Chico, de
Piazzola...
Resta uma pergunta
para a qual não tenho resposta. Perguntaram-me se acredito em Deus.
Respondi com versos do Chico: “Saudade é o revés do parto. É
arrumar o quarto para o filho que já morreu”. Qual é a mãe que
mais ama? A que arruma o quarto para o filho que vai voltar ou a que
arruma o quarto para o filho que não vai voltar? Sou um construtor
de altares. É o meu jeito de arrumar o quarto. Construo meus altares
à beira de um abismo escuro e silencioso. Eu os construo com poesia
e música. Os fogos que neles acendo iluminam o meu rosto e me
aquecem. Mas o abismo permanece escuro e silencioso.
Resta uma criança
que mora nesse corpo de velho e procura companheiros para brincar. De
que é que a alma tem sede? “De qualquer coisa como tudo que foi a
nossa infância. Dos brinquedos mortos, das tias idas. Essas coisas é
que são a realidade, embora já morressem. Não há império que
valha que por ele se parta uma boneca de criança” (Bernardo Soares
).
Resta um palhaço...
Na véspera de minha volta ao Brasil, a jovem ruiva sardenta que
havia sido minha aluna entrou na minha sala e me disse: “Sonhei com
você. Sonhei que você era um palhaço”. E sorriu. Tenho prazer em
fazer os outros rirem com minhas palhacices. O que escrevo,
frequentemente, é um espetáculo de circo. Faço malabarismos com
palavras. Pois a vida não é um circo?
Resta uma ternura
por tudo o que é fraco, do pássaro de asa quebrada ao velho trôpego
e surdo. Fui um adolescente fraco e amedrontado. Apanhei sem reagir.
Cresceu então dentro de mim uma fera que dorme. Toda vez que vejo
uma pessoa humilde e indefesa sendo humilhada por uma pessoa que se
julga grande coisa, a fera acorda e ruge. Tenho medo dela.
Resta a minha
fidelidade às minhas opiniões que teimo em tornar públicas, o que
me tem valido muitas tristezas e sucessivos exílios. Mas sei que
minhas opiniões, todas as opiniões, não passam de opiniões. Não
são a verdade. Ninguém sabe o que é a verdade. Meu passado está
cheio de certezas absolutas que ruíram com os meus deuses. Todas as
pessoas que se julgam possuidoras da verdade se tornam inquisidoras.
Por isso é preciso tolerância.
Resta uma tristeza
de morrer. A vida é tão bonita. Não é medo. É tristeza mesmo.
Lembro-me dos versos da Cecília, que sentia a mesma coisa. “E fico
a meditar se depois de muito navegar a algum lugar enfim se chega. O
que será, talvez, até mais triste. Nem barcas e nem gaivotas.
Apenas sobre humanas companhias. De longe o horizonte avisto,
aproximado e sem recurso. Que pena a vida ser só isso...”
Resta um medo do
morrer — aquelas coisas que vêm antes que a morte chegue. Acho que
as pessoas deveriam ter o direito de dizer, se quisessem: “É hora
de partir...”. E partissem. Se Deus existe e se Deus é bondade,
não posso crer que Ele ou Ela nos tenha condenado ao sofrimento,
como última frase da nossa sonata. A última frase deve ser bela.
Resta quanto tempo?
Não sei. O relógio da vida não tem ponteiros. Só se ouve o
tique-taque... Só posso dizer: “Carpe Diem”— colha o dia como
um morango vermelho que cresce à beira do abismo. É o que tento
fazer.
Rubem Alves,
in Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo
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