Minha visão
pessoal a respeito da religião é a mesma de Lucrécio. Vejo-a como
uma doença derivada do medo e como fonte de tristeza incalculável
para a raça humana. Não posso, no entanto, negar que ela realizou,
sim, algumas contribuições à civilização. No início, ajudou a
estabelecer o calendário e fez com que os sacerdotes egípcios
relatassem eclipses com cuidado tal que, com o tempo, tornaram-se
capazes de prevê-los. Estou pronto para admitir esses dois serviços
prestados, mas não sei de mais nenhum outro.
A palavra
“religião” é usada hoje em sentido bastante vago. Algumas
pessoas, sob influência de um protestantismo extremo, empregam-na
para denotar quaisquer convicções pessoais relativas à moral ou à
natureza do universo. Esse uso da palavra é bastante anistórico. A
religião é, fundamentalmente, um fenômeno social. É possível que
as igrejas devam sua origem a professores com convicções
individuais muito fortes, mas esses professores raramente exerceram
muita influência sobre as igrejas que fundaram, ao passo que as
igrejas exerceram enorme influência sobre as comunidades em que
floresceram. Peguemos como exemplo o caso que mais interessa aos
integrantes da civilização ocidental: os ensinamentos de Cristo,
tal como aparecem nos Evangelhos, têm tido extraordinariamente pouco
a ver com a ética dos cristãos. A coisa mais importante sobre o
cristianismo, do ponto de vista social e histórico, não é Cristo,
e sim a Igreja, de modo que, se formos julgar o cristianismo como
força social, não devemos recorrer aos Evangelhos em busca de
material. Cristo ensinou que se deve dar os bens que se tem aos
pobres, que não se deve brigar, que não se deve ir à igreja e que
não se deve punir o adultério. Nem católicos nem protestantes
mostraram algum tipo de forte desejo de seguir os ensinamento d’Ele
a respeito desses aspectos. Alguns franciscanos, é verdade, tentaram
ensinar a doutrina da pobreza apostólica, mas o papa os condenou, e
sua doutrina foi declarada herética. Ou, mais uma vez, consideremos
um texto como “Não julgueis, para que não sejais julgados” e
perguntemos a nós mesmos qual foi a influência que ele exerceu
sobre a Inquisição e a Ku-Klux-Klan.
O que é verdadeiro
a respeito do cristianismo é igualmente verdadeiro a respeito do
budismo. Buda era amável e iluminado; em seu leito de morte, riu dos
discípulos que o julgavam imortal. Mas o sacerdócio budista – tal
como existe, por exemplo, no Tibete – tem sido obscurantista,
tirânico e cruel no mais alto nível.
Nada existe de
acidental em relação a essa diferença entre uma Igreja e seu
fundador. Logo que se supõe que a verdade absoluta está contida nos
dizeres de um certo homem, eis que surge um corpo de especialistas
para interpretar seus dizeres, e esses especialistas invariavelmente
adquirem poder, já que detêm a chave para a verdade. Assim como
qualquer outra casta privilegiada, usam seu poder em benefício
próprio. São, no entanto, sob certo aspecto, piores do que qualquer
outra casta privilegiada, já que seu negócio é expor uma verdade
imutável, revelada de uma vez por todas em perfeição absoluta, de
modo que se transformam necessariamente em oponentes de todo
progresso intelectual e moral. A Igreja se opôs a Galileu e a
Darwin, e em nossos dias opõe-se a Freud. Na época em que gozava de
maior poder, foi ainda mais longe em sua oposição à via
intelectual. O papa Gregório, o Grande, escreveu a um certo bispo
uma carta que começava assim: “Um relato chegou até nós e não
podemos mencioná-lo sem corar: o de que vós explicastes a gramática
a certos amigos”. O bispo foi forçado, pela autoridade
pontificial, a desistir deste ato depravado, e a latinidade só foi
se recuperar no Renascimento. A Igreja é perniciosa não apenas no
que diz respeito à intelectualidade, mas também à moralidade. Com
isso quero dizer que ela ensina códigos éticos que não levam à
felicidade humana. Quando, há alguns anos, um plebiscito foi
realizado na Alemanha para discutir se as famílias reais depostas
deveriam ter permissão para desfrutar de sua propriedade privada, as
igrejas na Alemanha declararam oficialmente que seria contrário aos
ensinamentos do cristianismo privá-las disso. As igrejas, como todos
sabem, opuseram-se à abolição da escravatura durante o tempo que
foi possível e, com algumas exceções bem divulgadas, opõem-se
hoje ao movimento em direção à justiça econômica. O papa
condenou o socialismo oficialmente.
Bertrand
Russell, in Por que não sou cristão
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