Ivone contou que
tinha ido morar na Alemanha por causa de um inseto.
“Um inseto?”
“Sim, um simples
inseto”, disse Ivone. “Quando surgiu a barata, meu chefe ficou em
pânico. Durante uma reunião em São Paulo, uma barata sobrevivente
da última faxina rodopiou no meio da sala. Era uma barata cascuda,
cosmopolita, e estava zonza. Só dei importância à barata quando
meu chefe se levantou da cadeira, alarmado pela visão do inseto
asqueroso. Quer dizer, asqueroso para ele, não para mim.”
“Também detesto
baratas cascudas, cosmopolitas ou provincianas”, eu disse.
“São seres
inofensivos”, protestou Ivone. “E não mentem nem matam que nem
os homens. Além disso, uma personagem de Clarice usou uma barata
para comungar. É o máximo da transgressão e da transcendência.”
“Sem digressões
literárias, Ivone. Vamos à barata: o que você fez?”
“Tentei tirar o
inseto da sala, mas sem machucar o bichinho. Enquanto afastava a
barata até a porta, meu chefe dizia: ‘Pise nela, esmague…’. E,
quando ela sumiu, voltei à cadeira e disse: ‘Já foi embora, dr.
Klaus’.
“Ele ajeitou a
gravata, se recompôs, sentou e enxugou o suor com um lenço de seda.
Estava pálido, bebeu água e observou o chão. Para reanimá-lo,
informei que as vendas da empresa tinham aumentado e entreguei-lhe o
último relatório. Sorriu pela primeira vez. E eu comecei a rir…
“‘É pra rir
mesmo, disse o dr. Klaus. Rir e comemorar.’
“Eu ria e mexia
os ombros, como se estivesse dançando; as cócegas nas minhas costas
não paravam, subiam e desciam…
“‘Você está
muito mais animada do que eu, disse meu chefe.’
“‘Mas o senhor
não tem uma barata nas suas costas, eu disse.’
“‘Como…?’,
ele gritou, assustado. ‘Como ela foi parar nas suas costas?’
“‘As artimanhas
das baratas são incríveis’, eu disse.
“‘Então tire
essa barata do seu corpo’, disse o dr. Klaus, nervoso.
“O que eu fiz?
Tirei a blusa, encontrei a barata, fui até a janela e joguei-a no
espaço. Era voadora, de asas potentes. Voltei à mesa e, quando me
sentei, reparei no rosto vermelho do chefe, que me olhava com
admiração. Quer dizer, naquele momento não sabia dizer se era
admiração ou outra coisa. Eu estava de sutiã, com a blusa no meu
colo. Vesti lentamente a blusa e ficamos em silêncio, um olhando
para o outro. Enquanto ele bebia água, não tirava os olhos da minha
blusa. Depois encerrou a reunião. Cinco meses depois casei com Klaus
Schabe e fomos morar em Hamburgo, sede da empresa alemã.”
Milton Hatoum,
in Um solitário à espreita
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