segunda-feira, 7 de maio de 2018

Um rapaz à paisana

Éramos almas siamesas, amigas de verdade”, disse tia Tâmara, olhando para a mulher deitada.
Eu também olhava para essa mulher e perguntava para mim mesmo: se morta ainda era tão bela, como teria sido viva?
Casou cedo, jovem demais… Com aquele homem ali”, disse Tâmara, esticando o beiço para um dos militares perfilados à nossa direita. Ela curvou o corpo, roçou a boca no meu ouvido:
Um sujeito insuportável… Minha amiga merecia um homem melhor.”
Queria ver a boca e os olhos de minha tia, mas ela usava um chapéu com um véu de tule preto que lhe cobria a metade do rosto. Era um costume daquele tempo e das mulheres da minha família, minha avó também cobria o rosto com um véu de tule quando ia à missa ou às novenas.
Coronel…”, ela murmurou. “Um conquistador barato, um brutamonte.”
Sem mover o rosto, olhei para o conquistador: um homem de uns cinquenta anos, cabelos grisalhos bem penteados, o rosto abatido e olheiras roxas que pareciam hematomas de socos recentes. Não era um brutamonte nem tinha pinta de ser rude. Nem de longe ele lembrava um César, no máximo um centurião depois de uma batalha perdida. Mesmo naquele dezembro sombrio de 1967, a patente de oficial graduado não o engrandecia.
Ele era mais alto do que os outros e estava ereto, bem no centro de uma fileira de oficiais, todos fardados e com um quepe entre as mãos. Fardas azuis e verdes, intercaladas. Uma legião de homens congelados. Não lembro se eram treze ou quinze, lembro que era um número ímpar, eu gostava de contar o número de objetos e pessoas para saber se a soma era par ou ímpar. As mulheres na sala do velório eram quinze, os funcionários da funerária somavam um número par, contei quatro velas em castiçais de prata, duas bandeiras, sete coroas de flores e um rapaz tímido na soleira da porta. Eu era a única criança, ou uma criança crescida, com os pés e o coração batendo com força na porta da juventude.
Notei que até aquele momento ninguém estava chorando; acho que os olhos de Tâmara estavam marejados, mas o véu escuro me deixava na dúvida.
Nenhum parente da morta está no velório”, ela disse. “Todos vivem no interior, a cinco dias de barco da cidade. Moram na fronteira… Devem estar navegando, descendo o rio… Não vão chegar para o enterro.”
Virou o rosto para as fardas e prosseguiu com voz alterada, uma voz de ódio:
E isso porque eu paguei as passagens dos pais e irmãos da minha amiga.”
Eu conhecia o tom dessa voz, mas desconhecia a coragem de Tâmara.
Antes que um funcionário fechasse o caixão, o viúvo saiu da fileira e se aproximou da morta. Mas não foi o único que quis vê-la de perto e pela última vez: um rapaz à paisana atravessou lentamente a sala, parou no lado oposto ao do viúvo, tirou do bolso da calça uma folha de papel e colocou-a sobre as pernas da morta. Esse gesto causou mal-estar. À minha direita, fardas se moveram, mãos e quepes estremeceram. As mulheres, sentadas, cochicharam. Mais de duas abriram um leque e se abanaram com mãos nervosas. Um oficial foi ao encontro do rapaz, segurou-o pelo braço e os dois andaram na direção da porta. Quando passaram ao lado de minha tia, o rapaz parou, olhou para ela, mas foi empurrado com força pelo oficial. Então minha tia chorou aos prantos, tirou o chapéu e enxugou o rosto com um lenço. Vi os olhos vermelhos, olhos de tia, mas também de amiga e cúmplice…
Tâmara apertou minha mão e disse que devíamos ir embora. Eu não queria sair, queria testemunhar o fim do triste espetáculo, e ainda vi pedaços de papel que caíam no chão, frases e palavras escritas com tinta preta, que as mãos do viúvo rasgavam sem pressa, mas talvez com ódio e despeito.
O burburinho na sala aumentou, eu aproveitei esse bulício para perguntar à minha tia quem era aquele rapaz e o que estava escrito nas folhas de papel.
Não sei”, ela disse, agarrando minha mão e me puxando para fora da sala.
Ouvi gritos que vinham da rua, vários oficiais correram até a janela, uma algaravia tumultuou o velório.
Não sei”, repetiu Tâmara. “Mas não conta isso para os teus pais… Para ninguém.”
Foi o que fiz.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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