“Éramos
almas siamesas, amigas de verdade”, disse tia Tâmara, olhando para
a mulher deitada.
Eu
também olhava para essa mulher e perguntava para mim mesmo: se morta
ainda era tão bela, como teria sido viva?
“Casou
cedo, jovem demais… Com aquele homem ali”, disse Tâmara,
esticando o beiço para um dos militares perfilados à nossa direita.
Ela curvou o corpo, roçou a boca no meu ouvido:
“Um
sujeito insuportável… Minha amiga merecia um homem melhor.”
Queria
ver a boca e os olhos de minha tia, mas ela usava um chapéu com um
véu de tule preto que lhe cobria a metade do rosto. Era um costume
daquele tempo e das mulheres da minha família, minha avó também
cobria o rosto com um véu de tule quando ia à missa ou às novenas.
“Coronel…”,
ela murmurou. “Um conquistador barato, um brutamonte.”
Sem
mover o rosto, olhei para o conquistador: um homem de uns cinquenta
anos, cabelos grisalhos bem penteados, o rosto abatido e olheiras
roxas que pareciam hematomas de socos recentes. Não era um
brutamonte nem tinha pinta de ser rude. Nem de longe ele lembrava um
César, no máximo um centurião depois de uma batalha perdida. Mesmo
naquele dezembro sombrio de 1967, a patente de oficial graduado não
o engrandecia.
Ele
era mais alto do que os outros e estava ereto, bem no centro de uma
fileira de oficiais, todos fardados e com um quepe entre as mãos.
Fardas azuis e verdes, intercaladas. Uma legião de homens
congelados. Não lembro se eram treze ou quinze, lembro que era um
número ímpar, eu gostava de contar o número de objetos e pessoas
para saber se a soma era par ou ímpar. As mulheres na sala do
velório eram quinze, os funcionários da funerária somavam um
número par, contei quatro velas em castiçais de prata, duas
bandeiras, sete coroas de flores e um rapaz tímido na soleira da
porta. Eu era a única criança, ou uma criança crescida, com os pés
e o coração batendo com força na porta da juventude.
Notei
que até aquele momento ninguém estava chorando; acho que os olhos
de Tâmara estavam marejados, mas o véu escuro me deixava na dúvida.
“Nenhum
parente da morta está no velório”, ela disse. “Todos vivem no
interior, a cinco dias de barco da cidade. Moram na fronteira…
Devem estar navegando, descendo o rio… Não vão chegar para o
enterro.”
Virou
o rosto para as fardas e prosseguiu com voz alterada, uma voz de
ódio:
“E
isso porque eu paguei as passagens dos pais e irmãos da minha
amiga.”
Eu
conhecia o tom dessa voz, mas desconhecia a coragem de Tâmara.
Antes
que um funcionário fechasse o caixão, o viúvo saiu da fileira e se
aproximou da morta. Mas não foi o único que quis vê-la de perto e
pela última vez: um rapaz à paisana atravessou lentamente a sala,
parou no lado oposto ao do viúvo, tirou do bolso da calça uma folha
de papel e colocou-a sobre as pernas da morta. Esse gesto causou
mal-estar. À minha direita, fardas se moveram, mãos e quepes
estremeceram. As mulheres, sentadas, cochicharam. Mais de duas
abriram um leque e se abanaram com mãos nervosas. Um oficial foi ao
encontro do rapaz, segurou-o pelo braço e os dois andaram na direção
da porta. Quando passaram ao lado de minha tia, o rapaz parou, olhou
para ela, mas foi empurrado com força pelo oficial. Então minha tia
chorou aos prantos, tirou o chapéu e enxugou o rosto com um lenço.
Vi os olhos vermelhos, olhos de tia, mas também de amiga e cúmplice…
Tâmara
apertou minha mão e disse que devíamos ir embora. Eu não queria
sair, queria testemunhar o fim do triste espetáculo, e ainda vi
pedaços de papel que caíam no chão, frases e palavras escritas com
tinta preta, que as mãos do viúvo rasgavam sem pressa, mas talvez
com ódio e despeito.
O
burburinho na sala aumentou, eu aproveitei esse bulício para
perguntar à minha tia quem era aquele rapaz e o que estava escrito
nas folhas de papel.
“Não
sei”, ela disse, agarrando minha mão e me puxando para fora da
sala.
Ouvi
gritos que vinham da rua, vários oficiais correram até a janela,
uma algaravia tumultuou o velório.
“Não
sei”, repetiu Tâmara. “Mas não conta isso para os teus pais…
Para ninguém.”
Foi
o que fiz.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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