Xilogravura de Arlindo Daibert
No
que vim para um grupo de companheiros, esses estavam jogando buzo,
enchendo folga. Por simples que a companheirada naqueles derradeiros
tempos me caceteava com um enjoo, todos eu achava muito ignorantes,
grosseiros cabras. Somente que na hora eu queria a frouxa presença
deles ― fulão e sicrão e beltrão e romão ― pessoal ordinário.
A tanto, mesmo sem fome, providenciei para mim uma jacuba, no
come-calado. E quis ― que até me perguntei ― pensar na vida!
Penso? Mas foi no instante em que todos levantaram as caras: só
sendo um rebuliço, acolá, na virada que principiava a vertente ―
onde é que estavam uns outros, que chamavam, muito, acenando
especial. Pois fomos, ligeiro, ver o que, subindo pelo resfriado.
Passava
era uma tropa, os diversos lotes de burros, que vinham de São Romão,
levavam sal para Goiás. E o arrieiro-mestre relatando uma infeliz
notícia, dessas da vida. ― Ele era alto, feições compridas,
dentuço? ― Medeiro Vaz exigiu certeza. ― Olhe, pois era ― o
arrieiro respondeu ― e, antes de morrer, deu o nome: que era
Santos-Reis... Mais não propôs dizer, porque aí se exalou.
Comandante, o senhor creia, nós tivemos grande pena... A gente, em
volta, se consternava. Aqueles tropeiros, no Cururú, tinham achado o
Santos-Reis, que morria urgente; tinham acendido vela, e enterrado.
Febres? Ao menos, mais, a alma descansasse. A gente tirou chapéus,
em voto todos se benzendo. E o Santos-Reis era o homem que vivo fazia
mais falta ― ele estava viajando para trazer recado e combinação,
da parte de Sô Candelário e Titão Passos, chefes em nosso favor na
outra grande banda do Rio.
― Agora
alguém carece de ir... ― Medeiro Vaz decidiu, olhando salteado;
amém! ― nós apreciávamos. Eu espiei, caçando Diadorim,
que ali bem defronte de mim se portava, mesmo segurava uma
vara-de-ferrão, considerei nele certo propósito, de despique
gandaiado. Apartei minhas vistas. Requeri, dei passo: ― Se sendo
ordens, Chefe, eu gostava era de ir... Medeiro Vaz limpou a goela. A
meio, eu estava me lançando, mas mais negaceando prosápia: duvidoso
d ele consentir; pelo bom atirador que eu era, o melhor e mór,
necessitavam de mim, haviam de querer me mandar escoteiro, dizedor de
mensagem? E aí se deu o que se deu ― o isto é. Medeiro Vaz
concordou! ― Mas carece de levar um companheiro... ― ele propôs.
Aí em tanto eu não devia de me calar, deixar alheia a escôlha do
segundo, que não me competia? Ah, ânsia! que eu não queria o que
de certo queria, e que podia se surtir de repente... E a vontade de
fim, que me ora vinha ranger na boca, me levou num avanço! ― Sendo
suas ordens, Chefe, o Sesfrêdo comigo vai... ― falei. Nem olhei
Diadorim. Medeiro Vaz aprouve. Me encarou, demais, e despachou, em
duríssimo! ― Vai, então, e no caminho não morre! A ser que
Medeiro Vaz, por esse tempo, já acusava doença a quase acabada ―
no peso do fôlego e no desmancho dos traços. Estava amarelo
almecegado, se curvava sem querer, e diziam que no verter água ele
gemia. Ah, mas outro igual eu não conheci. Quero ver o homem deste
homem!... Medeiro Vaz ― o Rei dos Gerais...
Por
que era que eu estava procedendo à-tôa assim? Senhor, sei? O senhor
vá pondo seu perceber. A gente vive repetido, o repetido, e,
escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho.
Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos
assombros... Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é
que clareiam a sala. Digo! o real não está na saída nem na
chegada! ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. Mesmo
fui muito tolo! Hoje em dia, não me queixo de nenhuma coisa. Não
tiro sombras dos buracos. Mas, também, não há jeito de me baixar
em remorso. Sim, que só duma coisa. E dessa, mesma, o que tenho é
medo. Enquanto se tem medo, eu acho até que o bom remorso não se
pode criar, não é possível. Minha vida não deixa benfeitorias.
Mas me confessei com sete padres, acertei sete absolvições. No meio
da noite eu acordo e pelejo para rezar. Posso. Constante eu puder,
meu suor não esfria! O senhor me releve tanto dizer.
Mire
veja o que a gente é! mal dali a um átimo, eu selando meu cavalo e
arrumando meus dobros, e já me muito entristecia. Diadorim me
espreitava de longe, afetando a espécie duma vagueza. No me
despedir, tive precisão de dizer a ele baixinho:
― Por
teu pai vou, amigo, mano-oh-mano. Vingar Joca Ramiro... A fraqueza
minha, adulatória. Mas ele respondeu: ― Viagem boa, Riobaldo. E
boa-sorte... Despedir dá febre.
Guimarães
Rosa, in Grande sertão: veredas
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