Foi
preso o menino Bruno Lichtenstein, que arrombou a Faculdade de
Medicina. O menino Bruno Lichtenstein não é arrombador
profissional. Apenas acontece que o menino Bruno Lichtenstein tem um
amigo, e esse amigo é um cachorro, e esse cachorro ia ser trucidado
cientificamente, para estudos, na Faculdade de Medicina. O poeta
mineiro Djalma Andrade tem um soneto que acaba mais ou menos assim:
“se
entre os amigos encontrei cachorros,
entre os cachorros encontrei-te, amigo”.
entre os cachorros encontrei-te, amigo”.
Mas
com toda a certeza o menino Bruno Lichtenstein jamais leu esses
versos. Também com certeza nunca lhe explicaram o que é
vivissecção, nem lhe disseram que seu cão ia ser vivisseccionado.
Tudo o que ele sabia é que lhe haviam carregado o cachorro e que iam
matá-lo. Se fosse pedi-lo, naturalmente, não o dariam. Quem, neste
mundo, haveria de se preocupar com o pobre menino Bruno Lichtenstein
e o seu pobre cão? Mas o cachorro era seu amigo — e estava lá,
metido em um porão, esperando a hora de morrer. E só uma pessoa no
mundo podia salvá-lo: um menino pobre chamado Bruno Lichtenstein.
Com esse sobrenome de principado, Bruno Lichtenstein é um garoto sem
dinheiro. Não pagará a licença de seu amigo. Mas Bruno
Lichtenstein havia de salvar a vida de seu amigo — de qualquer
jeito. E jeito só havia um: ir lá e tirar o cachorro. De longe,
Bruno Lichtenstein chorava, pensando ouvir o ganido triste de um
condenado à morte. Via homens cruéis metendo o bisturi na carne
quente de seu amigo: via sangue derramado. Horrível, horrível.
Bruno Lichtenstein sentiu que seria o último dos infames se não
agisse imediatamente.
Agiu.
Escalou uma janela, arrebentou um vidro, saltou. Estava dentro do
edifício. Andando pelas salas desertas, foi até onde estava o seu
amigo. Sentiu que o seu coração batia mais depressa. Deu um
assovio, um velho assovio de amizade.
Um
vulto se destacou em um salto – e um focinho quente e úmido lambeu
a mão de Bruno Lichtenstein. Agora era fugir para a rua, para a
liberdade, para a vida…
Bruno
Lichtenstein, da cabeça aos pés, tremia de susto e de alegria. Foi
aí que ele ouviu uma voz áspera e espantada de homem. Era o dr.
Loforte. O dr. Loforte surpreendeu o menino. Um menino pobre, que
tremia, que havia arrombado a Faculdade. Só podia ser um ladrão!
Bruno Lichtenstein não explicou nada — e fez bem. Para o dr.
Loforte um cachorro não é um cachorro — é um material de estudo
como outro qualquer.
Na
polícia apareceu o pai do menino. O pai, o professor e o delegado
conversaram longamente — e Bruno Lichtenstein não ouvia nada. Só
ouvia, lá longe, o ganir de um condenado à morte.
Já
te entregaram o cachorro, Bruno Lichtenstein. Tu o mereceste, porque
tu foste amigo. Não te deram nem te darão medalha nenhuma —
porque não há medalha nenhuma para distinguir a amizade. Mas te
entregaram o teu cachorro, o cachorro que reivindicaste como um
pequeno herói. Tu és um homem, Bruno Lichtenstein — um homem no
sentido decente da palavra, muito mais homem que muito homem. Um
aperto de mão, Bruno Lichtenstein.
Rubem
Braga, in 1939
- Um episódio em Porto Alegre (Uma fada no front)
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