Maria
das Dores se assustou. Mas se assustou de fato.
Começou
pela menstruação que não veio. Isso a surpreendeu porque ela era
muito regular.
Passaram-se
mais de dois meses e nada. Foi a uma ginecologista. Esta diagnosticou
uma evidente gravidez.
– Não
pode ser! gritou Maria das Dores.
– Por
quê? a senhora não é casada?
– Sou,
mas sou virgem, meu marido nunca me tocou. Primeiro porque ele é
homem paciente, segundo porque já é meio impotente.
A
ginecologista tentou argumentar:
– Quem
sabe se a senhora em alguma noite...
–
Nunca! mas nunca mesmo!
–
Então, concluiu a ginecologista, não
sei como explicar. A senhora já está no fim do terceiro mês.
Maria
das Dores saiu do consultório toda tonta. Teve que parar num
restaurante e tomar um café. Para conseguir entender.
O
que é que estava lhe acontecendo? Grande angústia tomou-a. Mas saiu
do restaurante mais calma.
Na
rua, de volta para casa, comprou um casaquinho para o bebê. Azul,
pois tinha certeza que seria menino. Que nome lhe daria? Só podia
lhe dar um nome: Jesus.
Em
casa encontrou o marido lendo jornal e de chinelos. Contou-lhe o que
acontecia. O homem se assustou:
– Então
eu sou São José?
– É,
foi a resposta lacônica.
Caíram
ambos em grande meditação.
Maria
das Dores mandou a empregada comprar as vitaminas que a ginecologista
receitara. Eram para o benefício de seu filho.
Filho
divino. Ela fora escolhida por Deus para dar ao mundo o novo Messias.
Comprou
o berço azul. Começou a tricotar casaquinhos e a fazer fraldas
macias.
Enquanto
isso a barriga crescia. O feto era dinâmico: dava-lhe violentos
pontapés. Às vezes ela chamava São José para pôr a mão na sua
barriga e sentir o filho vivendo com força.
São
José então ficava com os olhos molhados de lágrimas. Tratava-se de
um Jesus vigoroso. Ela se sentia toda iluminada.
A
uma amiga mais íntima Maria das Dores contou a história abismante.
A amiga também se assustou:
– Maria
das Dores, mas que destino privilegiado você tem!
–
Privilegiado, sim, suspirou Maria das
Dores. Mas que posso fazer para que meu filho não siga a via crucis?
– Reze,
aconselhou a amiga, reze muito.
E
Maria das Dores começou a acreditar em milagres. Uma vez julgou ver
de pé ao seu lado a Virgem Maria que lhe sorria. Outra vez ela mesma
fez o milagre: o marido estava com uma ferida aberta na perna, Maria
das Dores beijou a ferida. No dia seguinte nem marca havia.
Fazia
frio, era mês de julho. Em outubro nasceria a criança.
Mas
onde encontrar um estábulo? Só se fosse para uma fazenda do
interior de Minas Gerais. Então resolveu ir à fazenda da tia
Mininha.
O
que lhe preocupava é que a criança não nasceria em vinte e cinco
de dezembro.
Ia
à igreja todos os dias e, mesmo barriguda, ficava horas ajoelhada.
Como madrinha do filho escolhera a Virgem Maria. E para padrinho o
Cristo.
E
assim foi se passando o tempo. Maria das Dores engordara brutalmente
e tinha desejos estranhos. Como o de comer uvas geladas. São José
foi com ela para a fazenda. E lá fazia seus trabalhos de marcenaria.
Um
dia Maria das Dores empanturrou-se demais – vomitou muito e chorou.
E pensou: começou a via crucis de meu sagrado filho.
Mas
parecia-lhe que se desse à criança o nome de Jesus, ele seria,
quando homem, crucificado. Era melhor dar-lhe o nome de Emmanuel.
Nome simples. Nome bom.
Esperava
Emmanuel sentada debaixo de uma jabuticabeira. E pensava:
Quando
chegar a hora, não vou gritar, vou só dizer: ai Jesus!
E
comia jabuticabas. Empanturrava-se a mãe de Jesus.
A
tia – a par de tudo – preparava o quarto com cortinas azuis. O
estábulo estava ali, com seu cheiro bom de estrume e suas vacas.
De
noite Maria das Dores olhava para o céu estrelado à procura da
estrela-guia. Quem seriam os três reis magos? quem lhe traria
incenso e mirra?
Dava
longos passeios porque a médica lhe recomendara caminhar muito. São
José deixara crescer a barba grisalha e os longos cabelos
chegavam-lhe aos ombros.
Era
difícil esperar. O tempo não passava. A tia fazia-lhes, para o café
da manhã, brevidades que se desmanchavam na boca. E o frio
deixava-lhes as mãos vermelhas e duras.
De
noite acendiam a lareira e ficavam sentados ali a se esquentarem. São
José arranjava para si um cajado. E, como não mudava de roupa,
tinha um cheiro sufocante. Sua túnica era de estopa. Ele tomava
vinho junto da lareira. Maria das Dores tomava grosso leite branco,
com o terço na mão.
De
manhã bem cedo ia espiar as vacas no estábulo. As vacas mugiam.
Maria das Dores sorria-lhes. Todos humildes: vacas e mulher. Maria
das Dores a ponto de chorar. Ajeitava as palhas no chão, preparando
lugar onde se deitar quando chegasse a hora. A hora da iluminação.
São
José, com seu cajado ia meditar na montanha. A tia preparava
lombinho de porco e todos comiam danadamente. E a criança nada de
nascer.
Até
que numa noite, às três horas da madrugada, Maria das Dores sentiu
a primeira dor. Acendeu a lamparina, acordou São José, acordou a
tia. Vestiram-se. E com um archote iluminando-lhes o caminho,
dirigiram-se através das árvores para o estábulo. Uma grossa
estrela faiscava no céu negro.
As
vacas, acordadas, ficaram inquietas, começaram a mugir.
Daí
a pouco nova dor. Maria das Dores mordeu a própria mão para não
gritar. E não amanhecia.
São
José tremia de frio. Maria das Dores, deitada na palha, sob um
cobertor, aguardava.
Então
veio uma dor forte demais. Ai Jesus, gemeu Maria das Dores. Ai Jesus,
pareciam mugir as vacas.
As
estrelas no céu.
Então
aconteceu.
Nasceu
Emmanuel.
E
o estábulo pareceu iluminar-se todo.
Era
um forte e belo menino que deu um berro na madrugada.
São
José cortou o cordão umbilical. E a mãe sorria. A tia chorava.
Não
se sabe se essa criança teve que passar pela via crucis. Todos
passam.
Clarice
Lispector, in A
via crucis do corpo
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