quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Conta de fadas

Capitão Ahab, por Anton Lomaev

No dia seguinte, Stubb aproximou-se de Flask. “Eu nunca tive um sonho tão estranho, King-Post. Você sabe a perna de marfim do velho, bem, eu sonhei que ele tinha me dado um pontapé; e quando tentei devolver, juro, pequeno, chutei minha própria perna. E então, olha isso! Ahab virou uma pirâmide, e eu, um louco furioso, que a chutava sem parar. Mas o que é mais curioso, Flask – sabe como os sonhos são curiosos –, apesar de toda a raiva que sentia, parecia que eu achava que, afinal de contas, o pontapé de Ahab não tinha sido muito ofensivo. ‘Bem’, pensei, ‘qual é o problema? Não é uma perna de verdade, é apenas uma perna falsa.’ E há uma diferença muito grande entre um chute de coisa viva e um chute de coisa morta. Por isso um golpe com os punhos, Flask, é cinquenta vezes mais difícil de suportar do que um golpe com uma bengala. É o membro vivo – ele torna o insulto vivo, pequeno. O tempo todo ficava pensando, sabe, que enquanto eu estava ralando os dedos idiotas do meu pé naquela pirâmide maldita – era tudo tão terrivelmente contraditório –, o tempo todo eu pensava, eu dizia para mim mesmo, ‘essa perna é apenas uma bengala – uma bengala de osso de baleia. Sim’, penso então, ‘foi uma paulada de brincadeira – na verdade, me deu um pontapé de baleia – o que não é humilhante. Além disso’, pensei, ‘olhe bem, aquela parte do pé – como é pequena; se fosse um fazendeiro de pés grandes que me desse um pontapé, isso sim seria um insulto dos infernos. Mas esse insulto se reduzia a pouca coisa. Mas agora vem a parte mais engraçada do sonho, Flask. Enquanto eu batia na pirâmide, um tritão velho corcunda, com cabelo de texugo, me agarra pelos ombros e me faz dar meia-volta. ‘O que você ‘tá fazendo?’, ele diz. ‘Meu Deus! Mas como me assustei. Que cara mais feia! Mas, sei lá como, logo superei o medo. ‘O que estou fazendo?’, digo, por fim. ‘O que tem com isso, eu gostaria de saber, senhor Corcunda? Quer levar um chute?’ Juro por Deus, Flask, eu não tinha acabado de dizer isso e ele virou seu traseiro, se inclinou e puxou um punhado de algas marinhas que usava para se cobrir – e o que você acha que eu vi? –, ora, raios, homem, de seu traseiro saíam como que marlins, com as pontas para fora. Pensando melhor, eu digo: ‘Acho que não vou te dar um chute, meu velho’. ‘Sábio Stubb’, ele diz, ‘sábio Stubb’, e fica repetindo baixinho, mascando as próprias gengivas, como uma bruxa de chaminé. Vendo que ele não ia parar de dizer ‘sábio Stubb, sábio Stubb’, achei melhor chutar a pirâmide de novo. Mal havia levantado o pé quando ele urrou, ‘Pare de chutar!’. ‘Ô!’, digo eu, ‘qual é o problema agora, meu velho?’ ‘Olha aqui’, ele diz, ‘vamos discutir o insulto. O Capitão Ahab chutou você, não é?’ ‘Sim, chutou sim’, eu digo – ‘bem aqui.’ ‘Muito bem’, ele diz – ‘ele usou sua perna de marfim, não é?’ ‘Sim, usou sim.’ ‘Pois bem’, ele diz, ‘sábio Stubb, do que você está se queixando? O chute não foi dado de boa vontade? Não com uma reles perna de pau comum, foi? Não, você levou um chute de um grande homem, com uma bela perna de marfim, Stubb. É uma honra; eu considero uma honra. Escute aqui, sábio Stubb. Na velha Inglaterra, os nobres consideram uma honra muito grande ser esbofeteado por uma rainha, e tornam-se cavaleiros da Ordem da Jarreteira por isso. Você pode se orgulhar, Stubb, porque foi chutado pelo velho Ahab, e com isso se tornou um homem sábio. Lembre-se do que eu digo: leve um chute dele; considere o chute uma honra; nunca devolva o chute, pois de nada adianta, sábio Stubb. Não vê a pirâmide?’ Ao dizer isso ele desapareceu de repente, de um modo esquisito, como se estivesse nadando no ar. Eu soltei um ronco, me virei, e eis que estava na minha rede! Ora, o que você acha desse sonho, Flask?”
Não sei, parece um pouco bobo pra mim.”
Pode ser, pode ser. Mas fez de mim um homem sábio, Flask. ‘Cê ‘tá vendo Ahab parado ali, olhando de lado sobre a popa? A melhor coisa que você pode fazer, Flask, é deixar o velho sozinho; nunca responda, não importa o que ele diga. Ô! O que é que ele está gritando? Escuta!”
Vocês do topo do mastro, aí! Observem com atenção, todos! Temos baleias nas imediações. Se avistarem uma baleia branca, gritem até arrebentar os pulmões!” “
O que você acha disso agora, Flask? Não tem alguma coisa estranha aí? Uma baleia branca – Ouviu isso, homem? Veja bem – Tem algo de especial no vento. Prepare-se, Flask. Ahab tem algo de sanguinário em mente. Mas bico calado, ele vem vindo pra cá.”
Herman Melville, in Moby Dick

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