quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Ao leitor desconhecido

Ele não sabe quem sou,
de onde venho,
o que faço, o que tenho,
onde quero chegar.
Conhece só minha linguagem,
que dispensa miçangas, paetês,
bugigangas de brilho,
vidrilhos, colchetes, ilhoses,
eternos algozes da ideia,
que a mantém longe da plateia,
numa torre isolada.
Nada sabe de mim e, no entanto,
hoje é para ele que escrevo,
que desenho meu canto em autorrelevo.
Somos capazes da mesma lua,
do mesmo pôr-de-mar,
quando o sol vai prevaricar,
tonto de estrelas;
somos parceiros de acampar dentro de flores,
provar dos seus licores,
sem nem sequer comprometê-las.
A esse meu par desconhecido
vale a curiosa informação
de que não tenho olhos azuis
(discutivelmente verdes como prêmio de consolação),
não sei nadar, nem falo alemão.
Um dia ainda aprendo a cozinhar.
Só se pode considerar um modo certo:
continuo a escrever porque o preciso perto,
companheiros de mundo até morrer.
Flora Figueiredo

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