Madrugada.
O hospital, como o Rio de Janeiro, dorme. O porteiro vê diante de si
uma cabrinha malhada, pensa que está sonhando.
— Bom
palpite. Veio mesmo na hora. Ando com tanta prestação atrasada, meu
Deus.
A
cabra olha-o fixamente.
— Está
bem, filhinha. Agora pode ir passear. Depois você volta, sim? Ela
não se mexe, séria.
— Vai,
cabrinha, vai. Seja camarada. Preciso sonhar outras coisas. É a
única hora em que sou dono de tudo, entende?
O
animal chega-se mais perto dele, roça-lhe o braço. Sentindo-lhe o
cheiro, o homem percebe que é de verdade, e recua.
— Essa
não! Que é que você veio fazer aqui, criatura? Dê o fora, vamos.
Repele-a
com jeito manso, porém a cabra não se mexe, encarando-o sempre.
—
Aiaiai! Bonito. Desculpe, mas a senhora
tem de sair com urgência, isto aqui é um estabelecimento público.
(Achando pouco satisfatória a razão.) Bem, se é público devia ser
para todos, mas você compreende… (Empurra-a docemente para fora, e
volta à cadeira.)
— O
quê? Voltou? Mas isso é hora de me visitar, filha? Está sem sono?
Que é que há? Gosto muito de criação, mas aqui no hospital, antes
do dia clarear… (Acaricia-lhe o pescoço.) Que é isso! Você está
molhada? Essa coisa pegajosa… O quê: sangue?! Por que não me
disse logo, cabrinha de Deus? Por que ficou me olhando assim feito
boba? Tem razão: eu é que não entendi, devia ter morado logo. E
como vai ser? Os doutores daqui são um estouro, mas cabra é
diferente, não sei se eles topam. Sabe de uma coisa? Eu mesmo vou te
operar!
Corre
à sala de cirurgia, toma um bisturi, uma pinça; à farmácia, pega
mercurocromo, sulfa e gaze; e num canto do hospital, assistido por
dois serventes, enquanto o dia vai nascendo, extrai do pescoço da
cabra uma bala de calibre 22, ali cravada quando o bichinho,
ignorando os costumes cariocas da noite, passava perto de uns homens
que conversavam à porta de um bar.
O
animal deixa-se operar, com a maior serenidade. Seus olhos envolvem o
porteiro numa carícia agradecida.
—
Marcolina. Dou-lhe este nome em lembrança
de uma cabra que tive quando criança, no Icó. Está satisfeita,
Marcolina?
—
Muito, Francisco.
Sem
reparar que a cabra aceitara o diálogo, e sabia o seu nome,
Francisco prosseguiu:
— Como
foi que você teve ideia de vir ao Miguel Couto? O Hospital
Veterinário é na Lapa.
— Eu
sei, Francisco. Mas você não trabalha na Lapa, trabalha no Miguel
Couto.
— E
daí?
— Daí,
preferi ficar por aqui mesmo e me entregar a seus cuidados.
— Você
me conhecia?
— Não
posso explicar mais do que isso, Francisco. As cabras não sabem
muito sobre essas coisas. Sei que estou bem a seu lado, que você me
salvou. Obrigada, Francisco.
E
lambendo-lhe afetuosamente a mão, cerrou os olhos para dormir. Bem
que precisava.
Aí
Francisco levou um susto, saltou para o lado:
— Que
negócio é esse: cabra falando?! Nunca vi coisa igual na minha vida.
E logo comigo, meu pai do céu!
A
cabra descerrou um olho sonolento, e por cima das barbas parecia
esboçar um sorriso:
— Pois
você não se chama Francisco, não tem o nome do santo que mais
gostava dos animais neste mundo? Que tem isso, trocar umas
palavrinhas com você? Olhe, amanhã vou pedir ao Ariano Suassuna que
escreva um auto da cabra, em que você vai para o céu, ouviu?
ESTRAMBOTE
Que
um dia Francis Jammes abra
lá
no alto seu azul aprisco.
Mande
entrar Marcolina, a cabra,
e
seu bom amigo Francisco.
Carlos
Drummond de Andrade, in
70 historinhas
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