quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Xadrez e política

Existe uma grave falha na minha formação: não aprendi a jogar xadrez, talvez o jogo mais fascinante jamais inventado. Claro, conheço as peças e sei movê-las. Mas, no xadrez, sou como o homem descrito por Sacks: não consigo perceber o “rosto” do jogo. Não me dediquei à aprendizagem da totalidade. E, na guerra, quem não tem a visão do todo, perde. Eu perco sempre e rápido. Xadrez é um jogo de guerra. Ou de política. Porque política e guerra são a mesma coisa. A guerra é a política quando feita com o uso das armas. Claro que na política se faz uso de armas também. Mas esse uso é dissimulado. Xadrez: dois exércitos que se defrontam. O confronto só é possível porque há um espaço vazio. Se não houvesse esse espaço, as peças ficariam imóveis, sem sair do lugar. O objetivo é mover as peças de tal forma que, ao final, o rei adversário fique sem saída e abdique. O que se chama xeque-mate. No tabuleiro estão presentes as forças, cada uma delas com um potencial de fogo diferente. Os bispos se movendo sempre na diagonal. O cavalos se movendo aos saltos. As torres, nas horizontais e nas perpendiculares. Os peões, infantaria, andam na frente, um passo de cada vez. Serão as primeiras vítimas na batalha. E a rainha, poder supremo, que desliza nas horizontais, nas verticais e nas diagonais! Com certeza, o inventor do jogo morava num país em que quem mandava era a rainha, o rei sendo nada mais que um fantoche, um símbolo, uma simples bandeira, com pouquíssimo poder de ataque, e que fica o tempo todo se escondendo por saber que o exército inimigo está atrás dele. Há muitos estilos diferentes no jogo. Mas, qualquer que seja o estilo, uma coisa é certa: as regras são fixas. Os jogadores têm liberdade para escolher o estilo, mas não têm liberdade para escolher as regras. Não é possível jogar o jogo do poder com ética. Porque o poder não conhece limites. É insaciável. Quer crescer cada vez mais. Deseja ser absoluto. E a ética é um empecilho a essa pretensão. Não existe lugar para ética no tabuleiro. Há uma única pergunta: “Que movimento fazer para derrotar o adversário?”. Isso é verdadeiro para o jogo de xadrez, o jogo econômico e o jogo político. Maquiavel, Marx e Weber sabiam disso. A ética é sempre invocada pelos que estão perdendo. Não conheço caso de partido no poder que tenha invocado princípios éticos para colocar limites ao uso de seu poder. Transparência! Que lindo princípio ético! Somente um louco seria transparente! Ser transparente é ser vulnerável. E quem é vulnerável fica fraco. Maquiavel, nos seus conselhos ao príncipe, faz a seguinte pergunta: “O que é mais importante? Que o príncipe seja virtuoso ou que o príncipe pareça ser virtuoso?”. A ética responderia: “Que ele seja virtuoso, transparentemente virtuoso!”. A esperteza política responde: “Que ele pareça ser virtuoso. O que o príncipe é, na realidade, deve ser protegido dos olhos por uma cortina opaca”. O jogo de xadrez pode muito bem nos ajudar a entender o nosso momento político. Tudo se faz para “parecer ser” e tudo se faz para evitar a transparência. Compreende-se o esforço do governo para preservar a “rainha”. Afinal de contas, é a peça mais importante para proteger o “rei”... É preciso entender: ninguém é culpado. Os jogadores não têm alternativas. Eles têm de se submeter às regras. Assim é a política, sempre.
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

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