Existe
uma grave falha na minha formação: não aprendi a jogar xadrez,
talvez o jogo mais fascinante jamais inventado. Claro, conheço as
peças e sei movê-las. Mas, no xadrez, sou como o homem descrito por
Sacks: não consigo perceber o “rosto” do jogo. Não me dediquei
à aprendizagem da totalidade. E, na guerra, quem não tem a visão
do todo, perde. Eu perco sempre e rápido. Xadrez é um jogo de
guerra. Ou de política. Porque política e guerra são a mesma
coisa. A guerra é a política quando feita com o uso das armas.
Claro que na política se faz uso de armas também. Mas esse uso é
dissimulado. Xadrez: dois exércitos que se defrontam. O confronto só
é possível porque há um espaço vazio. Se não houvesse esse
espaço, as peças ficariam imóveis, sem sair do lugar. O objetivo é
mover as peças de tal forma que, ao final, o rei adversário fique
sem saída e abdique. O que se chama xeque-mate. No tabuleiro estão
presentes as forças, cada uma delas com um potencial de fogo
diferente. Os bispos se movendo sempre na diagonal. O cavalos se
movendo aos saltos. As torres, nas horizontais e nas perpendiculares.
Os peões, infantaria, andam na frente, um passo de cada vez. Serão
as primeiras vítimas na batalha. E a rainha, poder supremo, que
desliza nas horizontais, nas verticais e nas diagonais! Com certeza,
o inventor do jogo morava num país em que quem mandava era a rainha,
o rei sendo nada mais que um fantoche, um símbolo, uma simples
bandeira, com pouquíssimo poder de ataque, e que fica o tempo todo
se escondendo por saber que o exército inimigo está atrás dele. Há
muitos estilos diferentes no jogo. Mas, qualquer que seja o estilo,
uma coisa é certa: as regras são fixas. Os jogadores têm liberdade
para escolher o estilo, mas não têm liberdade para escolher as
regras. Não é possível jogar o jogo do poder com ética. Porque o
poder não conhece limites. É insaciável. Quer crescer cada vez
mais. Deseja ser absoluto. E a ética é um empecilho a essa
pretensão. Não existe lugar para ética no tabuleiro. Há uma única
pergunta: “Que movimento fazer para derrotar o adversário?”.
Isso é verdadeiro para o jogo de xadrez, o jogo econômico e o jogo
político. Maquiavel, Marx e Weber sabiam disso. A ética é sempre
invocada pelos que estão perdendo. Não conheço caso de partido no
poder que tenha invocado princípios éticos para colocar limites ao
uso de seu poder. Transparência! Que lindo princípio ético!
Somente um louco seria transparente! Ser transparente é ser
vulnerável. E quem é vulnerável fica fraco. Maquiavel, nos seus
conselhos ao príncipe, faz a seguinte pergunta: “O que é mais
importante? Que o príncipe seja virtuoso ou que o príncipe pareça
ser virtuoso?”. A ética responderia: “Que ele seja virtuoso,
transparentemente virtuoso!”. A esperteza política responde: “Que
ele pareça ser virtuoso. O que o príncipe é, na realidade, deve
ser protegido dos olhos por uma cortina opaca”. O jogo de xadrez
pode muito bem nos ajudar a entender o nosso momento político. Tudo
se faz para “parecer ser” e tudo se faz para evitar a
transparência. Compreende-se o esforço do governo para preservar a
“rainha”. Afinal de contas, é a peça mais importante para
proteger o “rei”... É preciso entender: ninguém é culpado. Os
jogadores não têm alternativas. Eles têm de se submeter às
regras. Assim é a política, sempre.
Rubem
Alves, in
Ostra feliz não faz
pérola
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