quinta-feira, 5 de outubro de 2017

A borboleta louca


É melhor caminhar antes das seis da manhã, quando o bairro dorme, a poluição é mínima e o barulho de veículos, suportável. Mas sempre aparece um motoqueiro em polvorosa no fim da noite, a máquina cruza o sinal vermelho e voa não sei para onde.
A cidade ainda está escura, na calçada da padaria há copos de plástico e sacos de lixo. Passo perto de pessoas conhecidas: um sem-teto deitado na grama da pracinha, um mendigo na entrada de uma estação de metrô, um nissei que entra na padaria antes de abrir sua loja. Dois padeiros e o nissei me dão bom-dia e nós quatro nos assustamos com o rosnado de um pit bull.
Esse bicho mal-humorado e feroz ainda não se acostumou com o nosso cheiro: rosna e nos encara com um olhar hostil, como se advertisse: afastem-se daqui ou serão devorados. A parte traseira do carro que ele protege ultrapassa o limite da casa e invade a calçada, de modo que a mãe que empurra o carrinho de bebê tem de sair da calçada esburacada e andar na rua também esburacada. Seis quarteirões adiante, os carros e ônibus se multiplicam, o cheiro do ar já é outro.
Amanhece.
Os ônibus são dormitórios ambulantes, os poucos passageiros acordados, sérios e enfadados, olham para as fachadas feias ou para algo que só eles podem ver ou imaginar.
No caminho de volta, sei que vou encontrá-la. Há anos vejo a mulher na mesma posição: o rosto e os braços erguidos para o céu, o cabelo louro e ondulado caindo até a cintura como se fosse uma manta dourada.
Quando saí para caminhar pela primeira vez, lembro que me desviei dessa mulher estranha, depois me acostumei com sua pose e seus gestos, ela sempre usava um pijama de flanela e pantufas puídas, parecia uma atriz sem plateia, uma atriz que encena uma peça com os mesmos gestos e figurino num mesmo cenário, mas que muda o texto em cada encenação.
Anotei num caderno palavras que ela disse nesse tempo em que fui um de seus poucos espectadores, pedaços de frases que eu ouvia enquanto passava a dois metros da manta amarela; às vezes parava para observar o jardim da casa da atriz: um matagal denso, escuro, cheio de árvores frutíferas, que me fazia recordar os quintais da minha infância. As últimas palavras que anotei foram “As asas da borboleta louca vão provocar um furacão, vocês não acreditam?” e “Deus, não merecemos tanto escárnio, tanto cinismo…”.
Na semana passada não ouvi mais a voz dessa mulher. Fui tomado por uma tristeza enorme quando vi apenas uma bananeira solitária onde antes havia o matagal. Parei diante da casa antiga — uma das últimas do bairro — e li no alto da fachada o ano em que foi construída: 1889. A janela da sala estava escancarada, pude ver uma peruca loura cobrindo a tela de um velho aparelho de TV e, sobre um sofá também velho, o pijama de flanela.
Se os herdeiros ao menos tivessem conservado as árvores do quintal… Mas nem isso. Agora as caminhadas serão tediosas sem a presença da atriz que dizia coisas insensatas e talvez verdadeiras.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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