É
melhor caminhar antes das seis da manhã, quando o bairro dorme, a
poluição é mínima e o barulho de veículos, suportável. Mas
sempre aparece um motoqueiro em polvorosa no fim da noite, a máquina
cruza o sinal vermelho e voa não sei para onde.
A
cidade ainda está escura, na calçada da padaria há copos de
plástico e sacos de lixo. Passo perto de pessoas conhecidas: um
sem-teto deitado na grama da pracinha, um mendigo na entrada de uma
estação de metrô, um nissei que entra na padaria antes de abrir
sua loja. Dois padeiros e o nissei me dão bom-dia e nós quatro nos
assustamos com o rosnado de um pit bull.
Esse
bicho mal-humorado e feroz ainda não se acostumou com o nosso
cheiro: rosna e nos encara com um olhar hostil, como se advertisse:
afastem-se daqui ou serão devorados. A parte traseira do carro que
ele protege ultrapassa o limite da casa e invade a calçada, de modo
que a mãe que empurra o carrinho de bebê tem de sair da calçada
esburacada e andar na rua também esburacada. Seis quarteirões
adiante, os carros e ônibus se multiplicam, o cheiro do ar já é
outro.
Amanhece.
Os
ônibus são dormitórios ambulantes, os poucos passageiros
acordados, sérios e enfadados, olham para as fachadas feias ou para
algo que só eles podem ver ou imaginar.
No
caminho de volta, sei que vou encontrá-la. Há anos vejo a mulher na
mesma posição: o rosto e os braços erguidos para o céu, o cabelo
louro e ondulado caindo até a cintura como se fosse uma manta
dourada.
Quando
saí para caminhar pela primeira vez, lembro que me desviei dessa
mulher estranha, depois me acostumei com sua pose e seus gestos, ela
sempre usava um pijama de flanela e pantufas puídas, parecia uma
atriz sem plateia, uma atriz que encena uma peça com os mesmos
gestos e figurino num mesmo cenário, mas que muda o texto em cada
encenação.
Anotei
num caderno palavras que ela disse nesse tempo em que fui um de seus
poucos espectadores, pedaços de frases que eu ouvia enquanto passava
a dois metros da manta amarela; às vezes parava para observar o
jardim da casa da atriz: um matagal denso, escuro, cheio de árvores
frutíferas, que me fazia recordar os quintais da minha infância. As
últimas palavras que anotei foram “As asas da borboleta louca vão
provocar um furacão, vocês não acreditam?” e “Deus, não
merecemos tanto escárnio, tanto cinismo…”.
Na
semana passada não ouvi mais a voz dessa mulher. Fui tomado por uma
tristeza enorme quando vi apenas uma bananeira solitária onde antes
havia o matagal. Parei diante da casa antiga — uma das últimas do
bairro — e li no alto da fachada o ano em que foi construída:
1889. A janela da sala estava escancarada, pude ver uma peruca loura
cobrindo a tela de um velho aparelho de TV e, sobre um sofá também
velho, o pijama de flanela.
Se
os herdeiros ao menos tivessem conservado as árvores do quintal…
Mas nem isso. Agora as caminhadas serão tediosas sem a presença da
atriz que dizia coisas insensatas e talvez verdadeiras.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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