A
Elegia da lembrança impossível, de Jorge Luis Borges (Obras
Completas, v. III, p. 137), é um poema que propõe um jogo
inesgotável.
“Que
não daria eu pela memória...” é como começa.
A
partir daí o poeta lamenta a impossibilidade de se lembrar de
momentos que não viveu, mas gostaria de ter vivido.
As
não memórias de Borges relatam desde um discurso de Sócrates que
ele não presenciou até uma declaração de amor que não ouviu de
alguém, o que tornaria uma certa autora, talvez, a mais feliz de
todas.
Enquanto
todo mundo imagina um futuro, ele imagina um passado.
Quem
jamais se imaginou daqui a alguns anos mais bem-sucedido, muito bem
acompanhado, trabalhando menos, ganhando mais e com três quilos
abaixo do peso atual?
Quem
não perdeu horas pensando nas possíveis respostas de uma possível
entrevista que um dia, quem sabe, será publicada no The New York
Times?
Quem
nunca planejou o que faria com o prêmio de dezessete milhões da
Sena?
Qualquer
futuro que se imagine não chega a ser impossível, por mais
improvável que seja.
Mas
um passado que não aconteceu jamais terá acontecido. Por isso, a
brincadeira de imaginar pra trás, em vez de imaginar pra frente, é
tão livre.
Que
não daria eu por essa ideia.
Sair
inventando por aí possibilidades impossíveis.
Recordar
mentiras que poderiam ter mudado tudo.
Vislumbrar
o futuro ao contrário.
Reconstruir
a partir de um passado imaginário outro presente.
Ou
então fazer poesia do que não aconteceu, somente.
Que
não daria eu pela memória de uma menina menos magra e de uma moça
menos tímida.
De
um show dos Beatles em Liverpool.
De
um curso de fotografia em Paris.
De
um primeiro beijo à luz negra, numa garagem.
De
mais de mil rosas vermelhas, uma manhã aí.
De
uma noite perdida inventando um futuro que não era esse.
Da
melhor crônica do mundo que eu nunca escrevi.
De
um pressentimento que deu certo, de uma intuição exata (bem que eu
disse!), da aparição de um fantasma, de um voo de asa-delta, do
tempo em que eu era surfista.
Que
não daria eu pela memória de um vira-lata que eu encontrei na rua,
e que me seguiu até em casa, e que ficava o dia inteiro me
esperando, e que abanava o rabo quando eu chegava, e que dormia
comigo na minha cama, e que um dia teve oito filhotes, quatro meninos
e quatro meninas, cada um mais lindo que o outro.
De
um chapéu igual ao da Jackie.
De
uma boca igual à da Brigitte.
De
um sorriso igual ao da Ingrid.
De
um vestido igual ao da Rita.
De
um macacão Lee desbotado.
De
um guarda-chuva florido.
De
uma mala de couro cheia de etiquetas coloridas.
De
um trem, numa estação, onde foi? Não lembro mais.
Que
não daria eu pela memória de um encontro com Borges que não
aconteceu anos atrás.
E
do momento em que eu não tive a ideia, não tomei coragem e não
sugeri pra ele: por que você não escreve uma elegia da lembrança
impossível, Borges? (Éramos íntimos.)
E
da resposta que ele não me deu: pra você escrever uma crônica
sobre o tema daqui a muitos anos, menina. (Ele me chamava de menina
na minha memória. Eu juro.)
Adriana
Falcão, in O doido da garrafa
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