quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Que não daria eu por essa ideia?

A Elegia da lembrança impossível, de Jorge Luis Borges (Obras Completas, v. III, p. 137), é um poema que propõe um jogo inesgotável.
Que não daria eu pela memória...” é como começa.
A partir daí o poeta lamenta a impossibilidade de se lembrar de momentos que não viveu, mas gostaria de ter vivido.
As não memórias de Borges relatam desde um discurso de Sócrates que ele não presenciou até uma declaração de amor que não ouviu de alguém, o que tornaria uma certa autora, talvez, a mais feliz de todas.
Enquanto todo mundo imagina um futuro, ele imagina um passado.
Quem jamais se imaginou daqui a alguns anos mais bem-sucedido, muito bem acompanhado, trabalhando menos, ganhando mais e com três quilos abaixo do peso atual?
Quem não perdeu horas pensando nas possíveis respostas de uma possível entrevista que um dia, quem sabe, será publicada no The New York Times?
Quem nunca planejou o que faria com o prêmio de dezessete milhões da Sena?
Qualquer futuro que se imagine não chega a ser impossível, por mais improvável que seja.
Mas um passado que não aconteceu jamais terá acontecido. Por isso, a brincadeira de imaginar pra trás, em vez de imaginar pra frente, é tão livre.
Que não daria eu por essa ideia.
Sair inventando por aí possibilidades impossíveis.
Recordar mentiras que poderiam ter mudado tudo.
Vislumbrar o futuro ao contrário.
Reconstruir a partir de um passado imaginário outro presente.
Ou então fazer poesia do que não aconteceu, somente.
Que não daria eu pela memória de uma menina menos magra e de uma moça menos tímida.
De um show dos Beatles em Liverpool.
De um curso de fotografia em Paris.
De um primeiro beijo à luz negra, numa garagem.
De mais de mil rosas vermelhas, uma manhã aí.
De uma noite perdida inventando um futuro que não era esse.
Da melhor crônica do mundo que eu nunca escrevi.
De um pressentimento que deu certo, de uma intuição exata (bem que eu disse!), da aparição de um fantasma, de um voo de asa-delta, do tempo em que eu era surfista.
Que não daria eu pela memória de um vira-lata que eu encontrei na rua, e que me seguiu até em casa, e que ficava o dia inteiro me esperando, e que abanava o rabo quando eu chegava, e que dormia comigo na minha cama, e que um dia teve oito filhotes, quatro meninos e quatro meninas, cada um mais lindo que o outro.
De um chapéu igual ao da Jackie.
De uma boca igual à da Brigitte.
De um sorriso igual ao da Ingrid.
De um vestido igual ao da Rita.
De um macacão Lee desbotado.
De um guarda-chuva florido.
De uma mala de couro cheia de etiquetas coloridas.
De um trem, numa estação, onde foi? Não lembro mais.
Que não daria eu pela memória de um encontro com Borges que não aconteceu anos atrás.
E do momento em que eu não tive a ideia, não tomei coragem e não sugeri pra ele: por que você não escreve uma elegia da lembrança impossível, Borges? (Éramos íntimos.)
E da resposta que ele não me deu: pra você escrever uma crônica sobre o tema daqui a muitos anos, menina. (Ele me chamava de menina na minha memória. Eu juro.)
Adriana Falcão, in O doido da garrafa

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