Lembro
que no primeiro ano da invasão do Iraque, um
canal de TV transmitiu um programa em que um norte-americano, negro,
de dedo em riste para a câmera, gritava que Bush havia lhe tirado
seu bem mais precioso: o filho.
Ao
ver essa cena, recordei um conto de William Faulkner: “Dois
soldados”.
É
uma história triste e comovente, narrada por um menino de nove anos.
Ele e Pete — seu irmão mais velho — moram com os pais em
Frenchman’s Bend, um povoado nos confins do sul dos Estados Unidos.
Ambos trabalham com o pai na pequena lavoura da família. Durante a
noite, os dois irmãos acompanham furtivamente o noticiário
transmitido pelo rádio de um vizinho, o velho Killegrew. Pete ouve a
notícia do bombardeio de Pearl Harbor pelo Exército japonês em
dezembro de 1941. Por algum tempo, eles ouvem notícias da guerra,
até que um dia Pete diz ao irmão:
“Tenho
que ir.”
“Ir
para onde?”, pergunta o menino.
“Para
essa guerra”, responde Pete.
“Antes
de levarmos a lenha pra casa?”
“Ao
diabo a lenha”, diz Pete. “Não vou permitir que ninguém trate
os Estados Unidos desse modo.”
“Sim”,
diz o menino. “Com lenha ou sem lenha parece que temos de ir.”
Em
Memphis, Pete alista-se no Exército e em seguida viaja para a Ásia.
Nesse relato de Faulkner, o que comove e faz pensar não é a decisão
de Pete, cujo dever de defender a pátria é menos importante que a
reação de seus familiares. Essa reação é o contrapeso ao arroubo
patriótico de Pete. O caçula foge de casa, vai a pé para
Jefferson, depois pega um ônibus até Memphis. O encontro dos irmãos
— dois soldados — antes da partida sem volta de Pete é um dos
momentos mais significativos do conto. Para o mais velho, o
sentimento do dever e da honra prevalece sobre a separação da
família. Para o caçula, o patriotismo é uma noção vaga, mas a
batalha contra os japoneses lhe serve de pretexto para permanecer ao
lado do irmão. Quando eles se separam em Memphis, o caçula regressa
a Frenchman’s Bend; ao chegar à sua casa ele percebe ou sente que
nunca mais verá o irmão e chora. O desfecho do
conto é o choro convulsivo da criança.
Mas
há outra passagem relevante, que remete à cena a que assisti na TV
sobre um americano que perdeu o filho na invasão do Iraque. É uma
página que diz respeito à estupidez da guerra, de todas as guerras.
Uma única vez, os pais de Pete tentam persuadi-lo a não ir lutar na
Ásia.
“Ir
para a guerra?”, pergunta o pai. “Por quê? Acho que isso não
serve para nada. Não tens idade para o recrutamento, e não estão
invadindo o país.”
Os
pais de Pete mencionam um parente que participou na França da
Primeira Guerra Mundial; o próprio pai alistou-se no Exército e
passou nove meses em Memphis, à espera de uma convocação que,
afinal, não aconteceu. Mas a mãe de Pete foi mais enfática,
contrariando o senso comum do patriotismo norte-americano como algo
sagrado. A mãe diz, chorando:
“Se
pudesse, eu mesma iria no lugar dele. Não quero salvar o país.”
Há
várias formas de patriotismo. O tipo mais vulgar é fanático,
ufanista, não raramente irmanado a uma religião, e cego e surdo à
dor dos outros. Mas há também um patriotismo mais sofisticado e
profundo, muito menos autorreferente, capaz de dialogar com outras
culturas e superar limites estreitos de lealdade e honra. Em todo
caso, nenhum patriotismo deveria ser mais forte do que o amor
incondicional por um filho.
Milton
Hatoum,
in Um
solitário à espreita
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