Ranulfo
não era nosso tio, mas os meninos do largo São Sebastião passaram
a chamá-lo tio Ran quando ele se mudou para o centro de Manaus. Ele
tinha um sobrinho que era nosso amigo, um curumim órfão que
estudava canto no conservatório de Tarazibula Steinway e era
agarrado ao tio. O fato é que Ranulfo não se importava de ser
chamado tio, mano ou velho Ran. Velho para nós, que tínhamos onze,
doze anos, mas velho, jovem ou tio, tanto fazia para Ranulfo, que
escarnecia de tudo e de todos.
“Vocês
não sabem nada da vida”, ele dizia. “Por exemplo, os escorpiões.
Querem conhecer esse artrópode? É um bicho fantástico.”
Uma
tarde ele nos levou ao Seringal Mirim, onde havia uma mata de
seringueiras, jatobás e palmeiras. Hoje o Seringal é um trecho de
uma avenida larga e barulhenta por onde circulam milhares de carros.
No
Seringal ele traçou sete círculos pequenos na terra, cercou-os com
gravetos e derramou álcool em cada cerca. Vimos sete argolas de
fogo. Depois Ranulfo procurou escorpiões, não sei como ele
conseguia enxergar os bichinhos esconsos e fisgá-los no meio de
folhas secas, frutas podres e pedaços de pau. Com um galho encheu
uma cuia com sete escorpiões e pôs um no meio de cada círculo de
fogo. Eram acinzentados, graúdos, terríveis.
“Agora
observem o maior espetáculo da terra”, ele disse. “Uma picada
pode matar um homem. Pode matar um animal mais forte que um homem.”
O
fogo se aproximava dos bichinhos. Tio Ran se regozijava, os olhos
arregalados iam de um círculo a outro. Sete. E quando as chamas
cresciam, Ranulfo sentia mais júbilo:
“Vejam
como eles estão acuados, vejam a inutilidade do ferrão, da picada
venenosa no ar, da dor que essa picada poderia causar num ser
humano.”
Erguiam
o ferrão, agoniados, girando no espaço exíguo da terra calcinada;
avançavam um centímetro e logo recuavam, pareciam perdidos, doidos,
desesperados.
“Agora
vamos torcer, porque o jogo vai começar”, disse Ran, exaltado.
“Qual
jogo?”
“Vida
contra morte… Eles não têm saída. Ou morrem queimados ou se
suicidam. E preferem o suicídio à imolação.”
Lembro
que Josias, o mais sensível da turma, caiu fora antes do primeiro
suicídio. Os outros meninos queriam ver o círculo de fogo devorar
os escorpiões. Corríamos o olhar pelos sete círculos, víamos as
pinças e os corpos contorcidos, como se fossem pontos de
interrogação. Ainda havia claridade lá fora, mas o Seringal Mirim
escurecia, as copas das árvores altas antecipavam a noite do
espetáculo.
Tio
Ran ria, esfregando as mãos, torcendo pelos mais corajosos. Até
quando resistiriam? Um e outro cravavam o ferrão no próprio corpo.
Uma ferroada mortal, uma paralisia instantânea, a lacraia inerte na
arena iluminada, a crepitação que não revelava mais desespero nem
agonia, e sim um ruído seco, vegetal.
“Como
admiro esses rabos-tortos”, disse Ran, depois do último suicídio.
“Eles são mais corajosos que os nossos políticos corruptos.
Nenhum desses políticos se suicida; aliás, roubam e dançam, sem
medo de tropeçar. Mas são venenosos, vis, perigosíssimos. Se ao
menos fôssemos governados por escorpiões…”
Foi
uma das poucas vezes que nós vimos o velho Ran abalado, prestes a
chorar.
Não
lembro se essa excursão ao Seringal Mirim ocorreu antes ou depois de
1964. Agora que todos eles se foram — os escorpiões, os militares,
aqueles políticos — fico pensando na relação entre as lacraias
suicidas e os políticos execrados pelo incendiário Ran.
Não
concluí nada, mas quero distância de ambos: escorpiões e
políticos.
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
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