quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Escorpiões, suicidas e políticos

Ranulfo não era nosso tio, mas os meninos do largo São Sebastião passaram a chamá-lo tio Ran quando ele se mudou para o centro de Manaus. Ele tinha um sobrinho que era nosso amigo, um curumim órfão que estudava canto no conservatório de Tarazibula Steinway e era agarrado ao tio. O fato é que Ranulfo não se importava de ser chamado tio, mano ou velho Ran. Velho para nós, que tínhamos onze, doze anos, mas velho, jovem ou tio, tanto fazia para Ranulfo, que escarnecia de tudo e de todos.
Vocês não sabem nada da vida”, ele dizia. “Por exemplo, os escorpiões. Querem conhecer esse artrópode? É um bicho fantástico.”
Uma tarde ele nos levou ao Seringal Mirim, onde havia uma mata de seringueiras, jatobás e palmeiras. Hoje o Seringal é um trecho de uma avenida larga e barulhenta por onde circulam milhares de carros.
No Seringal ele traçou sete círculos pequenos na terra, cercou-os com gravetos e derramou álcool em cada cerca. Vimos sete argolas de fogo. Depois Ranulfo procurou escorpiões, não sei como ele conseguia enxergar os bichinhos esconsos e fisgá-los no meio de folhas secas, frutas podres e pedaços de pau. Com um galho encheu uma cuia com sete escorpiões e pôs um no meio de cada círculo de fogo. Eram acinzentados, graúdos, terríveis.
Agora observem o maior espetáculo da terra”, ele disse. “Uma picada pode matar um homem. Pode matar um animal mais forte que um homem.”
O fogo se aproximava dos bichinhos. Tio Ran se regozijava, os olhos arregalados iam de um círculo a outro. Sete. E quando as chamas cresciam, Ranulfo sentia mais júbilo:
Vejam como eles estão acuados, vejam a inutilidade do ferrão, da picada venenosa no ar, da dor que essa picada poderia causar num ser humano.”
Erguiam o ferrão, agoniados, girando no espaço exíguo da terra calcinada; avançavam um centímetro e logo recuavam, pareciam perdidos, doidos, desesperados.
Agora vamos torcer, porque o jogo vai começar”, disse Ran, exaltado.
Qual jogo?”
Vida contra morte… Eles não têm saída. Ou morrem queimados ou se suicidam. E preferem o suicídio à imolação.”
Lembro que Josias, o mais sensível da turma, caiu fora antes do primeiro suicídio. Os outros meninos queriam ver o círculo de fogo devorar os escorpiões. Corríamos o olhar pelos sete círculos, víamos as pinças e os corpos contorcidos, como se fossem pontos de interrogação. Ainda havia claridade lá fora, mas o Seringal Mirim escurecia, as copas das árvores altas antecipavam a noite do espetáculo.
Tio Ran ria, esfregando as mãos, torcendo pelos mais corajosos. Até quando resistiriam? Um e outro cravavam o ferrão no próprio corpo. Uma ferroada mortal, uma paralisia instantânea, a lacraia inerte na arena iluminada, a crepitação que não revelava mais desespero nem agonia, e sim um ruído seco, vegetal.
Como admiro esses rabos-tortos”, disse Ran, depois do último suicídio. “Eles são mais corajosos que os nossos políticos corruptos. Nenhum desses políticos se suicida; aliás, roubam e dançam, sem medo de tropeçar. Mas são venenosos, vis, perigosíssimos. Se ao menos fôssemos governados por escorpiões…”
Foi uma das poucas vezes que nós vimos o velho Ran abalado, prestes a chorar.
Não lembro se essa excursão ao Seringal Mirim ocorreu antes ou depois de 1964. Agora que todos eles se foram — os escorpiões, os militares, aqueles políticos — fico pensando na relação entre as lacraias suicidas e os políticos execrados pelo incendiário Ran.
Não concluí nada, mas quero distância de ambos: escorpiões e políticos.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

Nenhum comentário:

Postar um comentário