— Já
lhe passaram as loucuras?
Zero
Madzero inquiria sem sequer a olhar. Ele já tinha fechado a cova.
Sepultara os restos metálicos da estrela na terra lodosa. É assim
que se procede com os meninos mortos, meninos tão tenros que nem
nome possuem. O túmulo dessas crianças não pode ser aberto em
terra seca, requerendo, antes, o chão informe e aquoso da margem dos
rios. O mesmo ritual se seguia com a estrela, tão menininha, tão
inominada. Zero Madzero desentortou as costas, limpou o suor na testa
e suspirou:
— Em
menos de um dia já abri duas covas para um único falecido.
Madzero
olhou as grandes árvores que sombreavam o rio. Não havia vento mas
as copas dançavam como que animadas por um balanço vindo da própria
terra. Aquele rumor das folhas despertou nele lembranças antigas. E
recordou o pai acariciando os troncos das muangas, nsumos, msangas.
Os gestos meigos eram os de um amante, o suave afagar de quem tem
coração na ponta dos dedos. O seu velho, contudo, apenas escolhia
as árvores que ia abater. Seguia a tradição dos Achikunda que
fabricavam canoas e, com elas, superavam distâncias.
— Ser
canoeiro, era esse o meu sonho.
— Você
não precisa sonhar, meu marido. Você é um canoeiro, eu sou a sua
canoa.
Conhecer
as habilidades do rio, ser visitado por espíritos que avisam sobre
os ventos, remoinhos e hipopótamos, reconhecer as ilhas no meio do
leito, saber onde dormir, tudo isso Madzero aprendera com seu pai, em
silenciosas lições do ver fazer.
Ensinamento
maior, no entanto, era o seguinte: não é força que se pede a um
canoeiro. O segredo está no ritmo dos remos, batendo num mesmo
compasso na superfície da água. O cantar pode ser mais forte que a
corrente. Os remadores, antes da viagem, estancavam junto à margem e
escutavam o murmurar das águas.
— Ouçam
como o rio canta hoje.
Depois,
já nos barcos, eles escolhiam a adequada canção e com ela marcavam
o ritmo. Os cânticos tinham ainda uma outra função: cantava-se
para esquecer o cansaço.
—
Canções do rio? Você podia cantar
uma, agora, para me fazer esquecer a fome, pediu Mwadia.
A
mulher nunca pensou que ele cedesse. Por isso, reagiu com suspeita
quando ele lhe solicitou que se sentasse e fosse batendo palmas.
Afinal, o burriqueiro afinou a garganta e, de olhos fechados, entoou
a seguinte canção:
Vem
ver, vem-me ver
E
responde: estarei cansado de viver?
No
dia da minha morte, quem chorará por mim?
O
tom lacônico deixou-a vencida. Para enxotar tristezas ela abriu os
braços e olhou para o alto:
— Com
tanto céu, a gente nem precisa morrer.
Mia
Couto, in O outro pé da sereia
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