sábado, 2 de setembro de 2017

Canções do rio

Já lhe passaram as loucuras?
Zero Madzero inquiria sem sequer a olhar. Ele já tinha fechado a cova. Sepultara os restos metálicos da estrela na terra lodosa. É assim que se procede com os meninos mortos, meninos tão tenros que nem nome possuem. O túmulo dessas crianças não pode ser aberto em terra seca, requerendo, antes, o chão informe e aquoso da margem dos rios. O mesmo ritual se seguia com a estrela, tão menininha, tão inominada. Zero Madzero desentortou as costas, limpou o suor na testa e suspirou:
Em menos de um dia já abri duas covas para um único falecido.
Madzero olhou as grandes árvores que sombreavam o rio. Não havia vento mas as copas dançavam como que animadas por um balanço vindo da própria terra. Aquele rumor das folhas despertou nele lembranças antigas. E recordou o pai acariciando os troncos das muangas, nsumos, msangas. Os gestos meigos eram os de um amante, o suave afagar de quem tem coração na ponta dos dedos. O seu velho, contudo, apenas escolhia as árvores que ia abater. Seguia a tradição dos Achikunda que fabricavam canoas e, com elas, superavam distâncias.
Ser canoeiro, era esse o meu sonho.
Você não precisa sonhar, meu marido. Você é um canoeiro, eu sou a sua canoa.
Conhecer as habilidades do rio, ser visitado por espíritos que avisam sobre os ventos, remoinhos e hipopótamos, reconhecer as ilhas no meio do leito, saber onde dormir, tudo isso Madzero aprendera com seu pai, em silenciosas lições do ver fazer.
Ensinamento maior, no entanto, era o seguinte: não é força que se pede a um canoeiro. O segredo está no ritmo dos remos, batendo num mesmo compasso na superfície da água. O cantar pode ser mais forte que a corrente. Os remadores, antes da viagem, estancavam junto à margem e escutavam o murmurar das águas.
Ouçam como o rio canta hoje.
Depois, já nos barcos, eles escolhiam a adequada canção e com ela marcavam o ritmo. Os cânticos tinham ainda uma outra função: cantava-se para esquecer o cansaço.
Canções do rio? Você podia cantar uma, agora, para me fazer esquecer a fome, pediu Mwadia.
A mulher nunca pensou que ele cedesse. Por isso, reagiu com suspeita quando ele lhe solicitou que se sentasse e fosse batendo palmas. Afinal, o burriqueiro afinou a garganta e, de olhos fechados, entoou a seguinte canção:

Vem ver, vem-me ver
E responde: estarei cansado de viver?
No dia da minha morte, quem chorará por mim?

O tom lacônico deixou-a vencida. Para enxotar tristezas ela abriu os braços e olhou para o alto:
Com tanto céu, a gente nem precisa morrer.
Mia Couto, in O outro pé da sereia

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