sábado, 2 de setembro de 2017

A maldição de Babel

Uma história, em particular, me atraiu a atenção durante a leitura dos Contos filosóficos do mundo inteiro, antologia organizada pelo historiador francês Jean-Claude Carrière (Ediouro, tradução de Cordélia Magalhães). Uma história simples que traça um retrato aflitivo do mundo contemporâneo e da relação funcional e vulgar que temos, em geral, com as palavras.
Nos primeiros anos do século XX, nos Bálcãs, havia um homem que viajava negociando palavras. Ele recolhia palavras em uma cidade, pagava por elas e as oferecia na cidade seguinte. Preferia comprar palavras fluidas, que não se referissem a um objeto fixo ou conhecido. Nomes de plantas ignoradas, de seres obscuros ou de animais inexistentes. Palavras que, precariamente, perseguem coisas que as repelem, como as emoções vagas, os assombros e os estados sutis do espírito.
Em seu caderno de viajante, o negociante dispunha as palavras por rubricas, mas nunca encontrava uma classificação adequada. Na verdade, duvidava que tal classificação existisse. Mesmo assim, acreditava que, negociando palavras, ajudava os homens a viver melhor. Nós, seres falantes, nos sentimos desprovidos daquilo que não conseguimos nomear. Muitas vezes, experimentamos algo que queremos capturar e transmitir, mas as palavras nos faltam. Nessas horas, um buraco se abre em nosso peito.
A partir da metade do século, o negócio de nosso viajante entrou em decadência. Com o pós-guerra, as línguas se dissolveram no mundo homogêneo do pragmatismo. A era do ready-made e do prêt-à-porter transformou a linguagem em um instrumento banal – como uma chave de fenda ou abridor de latas. A busca do funcional massacrou a beleza do singular. A maldição de Babel – uma infernal mistura de línguas incompreensíveis – se realizava ao contrário. No mundo de hoje, todos dizemos as mesmas coisas, usando quase sempre as mesmas palavras. A clareza é nosso deus. Com isso, temos a ilusão de nos entender; quando, na verdade, nunca estivemos tão distantes uns dos outros.
Contos filosóficos do mundo inteiro é uma espécie de segundo volume de O círculo dos mentirosos, editado no Brasil em 2004 pela Conex. Nele, Jean-Claude Carrière se afirma, ele também, como um notável comerciante de histórias. Ele as recolhe em suas andanças pelo mundo e depois as oferece aos leitores. Foge, porém, das histórias míticas (que contêm explicações fechadas do mundo) e das moralistas (que se baseiam em princípios e certezas). Busca, ao contrário, relatos que – marca fundamental da ficção – digam aquilo que não pode ser dito de nenhuma outra maneira.
Certa vez, Carrière perguntou ao neurologista Oliver Sacks o que é, afinal, um homem normal. A resposta se refere mais à literatura que à neurologia: “Um homem normal é, talvez, aquele capaz de contar sua própria história”. Para viver, precisamos habitar uma narrativa. O homem que nada pode narrar sobre si, diz Carrière, “não sabe mais nada, nem quem é, nem o que deve fazer”. Não narramos, porém, para chegar ao verdadeiro – esse reino de pedra onde se guardam as certezas categóricas. Uma palavra não precisa ter um significado para ter força. A verdade, para as palavras, vem de outra esfera. É sua capacidade de surpreender e de agitar o espírito que define se uma palavra é verdadeira ou não.
O cineasta Alfred Hitchcock, lembra Carrière em outra história, detestava revelar os segredos guardados em seus filmes. Em Notorius, de 1946, intitulado no Brasil Interlúdio, toda a ação se desenrola em torno da luta pela posse de uma maleta. O que a mala contém? Terminamos o filme sem saber. Mas é justamente essa ausência de conteúdo que lhe confere poder. Para dar um nome ao que não pode ser nomeado, Hitchcock chama o segredo guardado na maleta de “McGuffin”. Quando insistiam que ele explicasse o que isso significa, o cineasta costumava contar uma história.
Dois desconhecidos viajam em um trem. Um deles leva uma maleta. “O que há dentro dela?”, o outro pergunta. “É um McGuffin”, seu companheiro diz. O companheiro pede que ele explique melhor. Ouve, então, uma resposta sem sentido: “É um aparelho que serve para capturar leões nos Adirondacks”. Os Adirondacks são um maciço, sem grande importância, localizado no Estado de Nova York. Todos sabem que lá não existem leões, o homem rebate, aborrecido. “Então pode ser que não seja um McGuffin”, o outro se limita a dizer. Toda resposta esbarra em um desconhecimento que, sem sucesso, ela sem empenha em encobrir.
Jean-Claude Carrière é um admirador de histórias que nos deixam em alerta. Relatos que trabalham não com as “belas mensagens” ou respostas adequadas, mas com o casual, o brusco e o fortuito. Inimigo dos relatos categóricos, ele privilegia as histórias que guardam a fluidez e a desordem das narrativas que, secretamente, contamos para nós mesmos. Estas podem ser desconcertantes, incoerentes e até mentirosas. Mas são as mais verdadeiras das histórias: porque são vivas.
As histórias reunidas nesses Contos filosóficos revelam, antes de tudo, e para usar uma expressão grata a Carrière, nossa “essência de vidro”. Como não existem “explicações finais”, nos sentimos sempre despedaçados pelos acontecimentos. Ficções nos ajudam a suportar a rispidez dos fatos. Muitas vezes, não precisamos sequer mudar de palavras, mas só de perspectiva. Como ensina uma das mais célebres histórias de Nasreddin Hodja, o lendário fabulista turco do século XIII.
Nasreddin sai de casa à noite, de camisolão, com os braços estendidos para a frente. Um vizinho, espantado, pergunta o que ele está fazendo. “Minha mulher contou para todo mundo que sou sonâmbulo. Eu quis verificar”, responde. O vizinho, curioso, pede que ele explique o que conseguiu descobrir. “Psiu! Você pode me fazer correr um grave perigo! Sobretudo, não me acorde!”.
Em um mundo dominado pela maldição de Babel, no qual tudo se explica e se demonstra, nos sentimos muitas vezes – como os psicóticos – acorrentados ao real. É bom recordar, aqui, as sábias palavras de Virginia Woolf: “Fatos são uma forma de ficção bastante inferior”.
José Castello, in Sábados inquietos

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