Uma
história, em particular, me atraiu a atenção durante a leitura dos
Contos filosóficos do mundo inteiro, antologia organizada
pelo historiador francês Jean-Claude Carrière (Ediouro, tradução
de Cordélia Magalhães). Uma história simples que traça um retrato
aflitivo do mundo contemporâneo e da relação funcional e vulgar
que temos, em geral, com as palavras.
Nos
primeiros anos do século XX, nos Bálcãs, havia um homem que
viajava negociando palavras. Ele recolhia palavras em uma cidade,
pagava por elas e as oferecia na cidade seguinte. Preferia comprar
palavras fluidas, que não se referissem a um objeto fixo ou
conhecido. Nomes de plantas ignoradas, de seres obscuros ou de
animais inexistentes. Palavras que, precariamente, perseguem coisas
que as repelem, como as emoções vagas, os assombros e os estados
sutis do espírito.
Em
seu caderno de viajante, o negociante dispunha as palavras por
rubricas, mas nunca encontrava uma classificação adequada. Na
verdade, duvidava que tal classificação existisse. Mesmo assim,
acreditava que, negociando palavras, ajudava os homens a viver
melhor. Nós, seres falantes, nos sentimos desprovidos daquilo que
não conseguimos nomear. Muitas vezes, experimentamos algo que
queremos capturar e transmitir, mas as palavras nos faltam. Nessas
horas, um buraco se abre em nosso peito.
A
partir da metade do século, o negócio de nosso viajante entrou em
decadência. Com o pós-guerra, as línguas se dissolveram no mundo
homogêneo do pragmatismo. A era do ready-made e do
prêt-à-porter transformou a linguagem em um instrumento
banal – como uma chave de fenda ou abridor de latas. A busca do
funcional massacrou a beleza do singular. A maldição de Babel –
uma infernal mistura de línguas incompreensíveis – se realizava
ao contrário. No mundo de hoje, todos dizemos as mesmas coisas,
usando quase sempre as mesmas palavras. A clareza é nosso deus. Com
isso, temos a ilusão de nos entender; quando, na verdade, nunca
estivemos tão distantes uns dos outros.
Contos
filosóficos do mundo inteiro é uma espécie de segundo volume
de O círculo dos mentirosos, editado no Brasil em 2004 pela
Conex. Nele, Jean-Claude Carrière se afirma, ele também, como um
notável comerciante de histórias. Ele as recolhe em suas andanças
pelo mundo e depois as oferece aos leitores. Foge, porém, das
histórias míticas (que contêm explicações fechadas do mundo) e
das moralistas (que se baseiam em princípios e certezas). Busca, ao
contrário, relatos que – marca fundamental da ficção – digam
aquilo que não pode ser dito de nenhuma outra maneira.
Certa
vez, Carrière perguntou ao neurologista Oliver Sacks o que é,
afinal, um homem normal. A resposta se refere mais à literatura que
à neurologia: “Um homem normal é, talvez, aquele capaz de contar
sua própria história”. Para viver, precisamos habitar uma
narrativa. O homem que nada pode narrar sobre si, diz Carrière, “não
sabe mais nada, nem quem é, nem o que deve fazer”. Não narramos,
porém, para chegar ao verdadeiro – esse reino de pedra onde se
guardam as certezas categóricas. Uma palavra não precisa ter um
significado para ter força. A verdade, para as palavras, vem de
outra esfera. É sua capacidade de surpreender e de agitar o espírito
que define se uma palavra é verdadeira ou não.
O
cineasta Alfred Hitchcock, lembra Carrière em outra história,
detestava revelar os segredos guardados em seus filmes. Em Notorius,
de 1946, intitulado no Brasil Interlúdio, toda a ação se
desenrola em torno da luta pela posse de uma maleta. O que a mala
contém? Terminamos o filme sem saber. Mas é justamente essa
ausência de conteúdo que lhe confere poder. Para dar um nome ao que
não pode ser nomeado, Hitchcock chama o segredo guardado na maleta
de “McGuffin”. Quando insistiam que ele explicasse o que isso
significa, o cineasta costumava contar uma história.
Dois
desconhecidos viajam em um trem. Um deles leva uma maleta. “O que
há dentro dela?”, o outro pergunta. “É um McGuffin”, seu
companheiro diz. O companheiro pede que ele explique melhor. Ouve,
então, uma resposta sem sentido: “É um aparelho que serve para
capturar leões nos Adirondacks”. Os Adirondacks são um maciço,
sem grande importância, localizado no Estado de Nova York. Todos
sabem que lá não existem leões, o homem rebate, aborrecido. “Então
pode ser que não seja um McGuffin”, o outro se limita a dizer.
Toda resposta esbarra em um desconhecimento que, sem sucesso, ela sem
empenha em encobrir.
Jean-Claude
Carrière é um admirador de histórias que nos deixam em alerta.
Relatos que trabalham não com as “belas mensagens” ou respostas
adequadas, mas com o casual, o brusco e o fortuito. Inimigo dos
relatos categóricos, ele privilegia as histórias que guardam a
fluidez e a desordem das narrativas que, secretamente, contamos para
nós mesmos. Estas podem ser desconcertantes, incoerentes e até
mentirosas. Mas são as mais verdadeiras das histórias: porque são
vivas.
As
histórias reunidas nesses Contos filosóficos revelam, antes
de tudo, e para usar uma expressão grata a Carrière, nossa
“essência de vidro”. Como não existem “explicações finais”,
nos sentimos sempre despedaçados pelos acontecimentos. Ficções nos
ajudam a suportar a rispidez dos fatos. Muitas vezes, não precisamos
sequer mudar de palavras, mas só de perspectiva. Como ensina uma das
mais célebres histórias de Nasreddin Hodja, o lendário fabulista
turco do século XIII.
Nasreddin
sai de casa à noite, de camisolão, com os braços estendidos para a
frente. Um vizinho, espantado, pergunta o que ele está fazendo.
“Minha mulher contou para todo mundo que sou sonâmbulo. Eu quis
verificar”, responde. O vizinho, curioso, pede que ele explique o
que conseguiu descobrir. “Psiu! Você pode me fazer correr um grave
perigo! Sobretudo, não me acorde!”.
Em
um mundo dominado pela maldição de Babel, no qual tudo se explica e
se demonstra, nos sentimos muitas vezes – como os psicóticos –
acorrentados ao real. É bom recordar, aqui, as sábias palavras de
Virginia Woolf: “Fatos são uma forma de ficção bastante
inferior”.
José
Castello, in Sábados inquietos
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