— Como
vai, seu Alexandre? Que estrago foi esse? perguntou mestre Gaudêncio
à porta da camarinha.
—
Macacoas da idade, suspirou o doente. Na
beira da cova desde a semana passada. Tomei a purga de pinhão que o
senhor me ensinou. Entre, seu Gaudêncio, vá-se abancando. Tomei a
purga de pinhão e uns xaropes. Depois sinha Terta andou por aí e me
deu um suadouro.
Estava
na cama de varas, a testa enrolada num lenço vermelho, a camisa de
algodão aberta mostrando os pelos do peito e o rosário de contas
brancas e azuis. Cesária e Das Dores levaram para o quarto a mobília
da sala: a pedra de amolar, a esteira, a mala de couro cru e o cepo.
Mestre Gaudêncio baixou-se, encolheu-se na passagem estreita e
escorregou da treva do corredor para a meia luz que a candeia de
azeite espalhava. Seu Libório acompanhou-o. O cego preto Firmino
sondou a abertura com o cajado, arriscou alguns passos e, tateando a
parede, acercou-se da cama:
— Onde
é a dor, seu Alexandre?
— Sei
não, seu Firmino, respondeu mole o dono da casa. Pega na raiz do
cabelo e vai ao dedo grande do pé. Sente, seu Firmino, sentem
vossemecês. Me dê água, Cesária.
Os
visitantes mergulharam na sombra que se adensava nos cantos,
procuraram, descobriram e utilizaram os móveis. Das Dores saiu,
voltou com um caneco de lata enferrujada, que ofereceu ao padrinho. O
enfermo ergueu-se lento num cotovelo, bebeu, deixou cair desanimado
no travesseiro a cabeça cor de sangue, como a de um galo-de-campina.
—
Arreado, meu amigo, queixou-se. A
princípio era uma gastura, o estômago embrulhado e a vista
escurecendo. Botei para o interior a purga de pinhão de mestre
Gaudêncio e a garrafada que Cesária fez. Das Dores rezou uma oração
forte. Depois veio sinha Terta. Ai!
—
Esteja quieto, seu Alexandre, murmurou o
negro. É melhor vossemecê calar a boca, fechar os olhos e
descansar.
— Que
descansar! A vida inteira aqui descansando, seu Firmino! Isto é
negócio? Não adianta descansar. Ai! Não há mezinha que sirva.
Desta vez acho que embarco.
— Não
embarca não, sentenciou mestre Gaudêncio curandeiro. É assim
mesmo. A moléstia vai comendo, vai comendo, e quando mata a fome,
deixa o corpo do cristão. Aí o suplicante se levanta e mata a fome
também. Endurece, engorda, conversa, desempena o espinhaço.
— Se
o senhor fala, é porque sabe, seu Gaudêncio, gemeu Alexandre. Peço
a Deus que os anjos digam amém. Esta fé é que me traz em pé. Ora
vejam que besteira. Em pé! Aqui de papo para o ar, contando os
caibros, não presto para nada. Cesária fez uma promessa: se me
endireitar, arranja umas novenas, vai à missa um ano inteiro todos
os domingos e paga cinco libras de cera a Nossa Senhora do Amparo.
— Seu
Alexandre, tornou o cego, vossemecê está gastando fôlego à toa,
perdendo força.
— Há
uma semana que não falo, seu Firmino, e se falo, é para soltar
variedades. Agora que estou no meu juízo não me calo, nem por
decreto. Preciso desabafar, dizer o que vi naqueles sonhos agoniados
de quem está de viagem para a terra dos pés juntos. Primeiro foi um
bode. Montei-me nele, e o bicho cresceu, passou as nuvens, chegou ao
céu, ficou tão alto que eu não enxergava a terra. Um fumaceiro, um
pretume. Segurava-me desesperadamente, com receio de me despencar lá
de cima e esbagaçar-me. O infeliz saltava como se tivesse o diabo no
couro, espetava as estrelas com as pontas, dava marradas na lua e
sapecava os cabelos do focinho no sol. Num dos pulos desaprumei-me e
caí. Caí escanchado numa onça-pintada, que se atirou pelo mundo
correndo, um pé de vento. Andou, virou, mexeu, atravessou um
espinheiro (lá deixei o olho esquerdo num garrancho), meteu-se num
mato cheio de marquesões cobertos de jacas maduras, parou na beira
de um rio que, pelos modos, era o S. Francisco. Vai senão quando uma
coisa me bateu no estribo. Levantei o rebenque, saltei no chão, mas
aí notei que estava com a perna metida na goela de uma jiboia, até
a coxa.
—
“Valha-me o Senhor S. Bento, gritei.
Sou um homem frito.” Nessa altura a cachorra Moqueca apareceu e
começou a latir. A cobra assustou-se, livrei-me dela devagarinho,
saí atrás de uma guariba que fumava cachimbo e usava gibão e
guarda-peito.
—
Desarranjo no interior, segredou mestre
Gaudêncio curandeiro.
— Isso
mesmo, seu Gaudêncio, concordou Alexandre. Miolo avariado. O
aperreio do sonho continuou, misturado a casos verdadeiros. Uma
confusão, um sarapatel, seu Firmino. Das Dores rezando a oração
forte, Cesária no cós da saia de Nossa Senhora, e eu malucando na
beira do S. Francisco, rastejando uma guariba. Tremia que era um deus
nos acuda, procurava afastar aquelas bobagens, mas um papagaio, com
um olho de gente no bico, chegava junto de mim, arrastando os pés
apalhetados: — “Está aqui, seu major. Está aqui o olho que eu
achei estrepado num garrancho, coberto de moscas e formigas. Bote o
olho na cara, seu major.” Eu aceitava o conselho e via
perfeitamente o papagaio, o S. Francisco, Cesária de joelhos,
bulindo nas contas, Das Dores rezando a oração de sustância. A
febre não era deste mundo, um febrão pior que o fogo do inferno,
sim senhores. Aí sinha Terta se apresentou. Sentiu de longe a
quentura, sentiu a quentura no fim do pátio, lá para os pés de
juá, foi o que ela disse. Foi ou não foi, Cesária?
— Foi,
Alexandre, confirmou Cesária. Podem perguntar a sinha Terta.
— Não
senhora, interveio o curandeiro. Fale, seu Alexandre. Está com
vontade de falar, fale. É bom. Nós escutamos e o senhor espalha a
morrinha. Fale até rebentar.
— Uma
peste, seu Gaudêncio. Já andou perto de fornalha de engenho? Era
aquilo. Sinha Terta sentiu o calor no fim do pátio.
— Não
é muito não? perguntou o cego.
— Sei
lá, respondeu Alexandre. Pode ser que seja. Sinha Terta disse, mas
se vossemecê julga que ela se enganou, não discuto. Isso não tem
importância. A verdade é que eu estava com febre. E estou. Pegue
aqui no meu pulso. Escangalhado, seu Firmino. Felizmente agora já
penso direito, a leseira desapareceu, Deus seja louvado. Pois, como
ia contando, sinha Terta chegou, estirou o beiço, foi à cozinha e
ferveu muita flor de sabugueiro. Bebi uma panela toda. Sinha Terta me
consolou, arrumou em cima de mim uma serra de panos e saiu com Das
Dores, que não se aguentava nas pernas, coitada. Cesária, bamba
também, se amadorrou ali na rede. Fiquei só. E começou o efeito do
remédio, um despotismo, sim senhores. Quase me desmanchei em suor.
As bobagens da arrelia voltaram, achei-me de novo no S. Francisco,
ouvindo as lorotas do papagaio, que me acompanhava em voos curtos. A
sede me apertou. Deitei-me de barriga para baixo, encostei a boca na
correnteza e empanzinei-me com mais de uma canada, mas quando me
levantei, estava seco, a língua dura, cuspindo bala. Avistei de
supetão uma canoa que se largava para a outra banda, carregada de
tatus. — “Entre para dentro, major Alexandre, convidou-me o dr.
Silva, que era o canoeiro. Tem lugar para o senhor.” Despedi-me do
papagaio, acomodei-me na embarcação e ela se afastou. Dr. Silva
quis puxar conversa, mas eu estava repugnado, suando, suando. —
“Santa Maria! estranhou o dr. Silva. Que é que o senhor tem que
está pingando tanto, major Alexandre?” E eu me expliquei: —
“Armadas de sinha Terta. Empurrou-me no bucho um suadouro brabo, e
estou assim, derretendo-me como sebo na brasa. Parece que me sumo.
Quando acabar esta desgraceira, não me resta nem osso.” Fomos
navegando. Dr. Silva dizia uns casos e eu suava. A canoa, com o peso
do suor, no meio do rio emborcou. — “Estamos afundando, gritou o
dr. Silva. Caia na água, major. Caia na água e veja se alcança
terra.” Dito e feito. Saltei da cama, num desespero, aos berros: —
“Cesária, que é das minhas alpercatas?” Saibam vossemecês que
eu estava com água pela canela. Cesária deixou a rede, as saias
levantadas, num assombro: — “Jesus, Maria, José! A gente se
afoga.” Ainda azuretado, com o S. Francisco e o dr. Silva na
cabeça, não me espantei muito. Depois tomei tento e informei-me: —
“Está chovendo, Cesária?” — “Está não, Xandu. Certamente
houve trovoada nas cabeceiras do riacho.” Foi ver as coisas lá
fora e achou tudo em ordem: o tempo limpo, o céu estrelado, o riacho
na largura do costume. Voltou — e percebemos o motivo daquele
despropósito. O suor tinha enchido a casa, fazia um barulho feio no
corredor, saía pelos fundos e entrava no barreiro. Entendem?
Horrível, meus amigos.
— Um
desadoro, pois não, concordou o cego. Mas quem sabe se aquilo não
era trapalhada? Talvez vossemecê estivesse zuruó, tresvariando.
—
Estava não, seu Firmino, respondeu
Alexandre. Acordei. E Cesária molhou a barra do vestido. Podem
perguntar a ela. A casa está úmida. Assim de noite, com esta
candeia safada, não se nota, mas de dia vê-se bem. E as alpercatas
sumiram-se. As alpercatas foram encontradas anteontem no quintal,
enganchadas num pé de muçambê. O senhor quer prova melhor, seu
Firmino? Ai! Aquele suadouro me arrasou. Eu queria conversar com os
senhores, mas não posso, estou feito um molambo. Não reparem na
falta não, meus amigos. Vou dormir.
Graciliano
Ramos, in Histórias de Alexandre
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