A
culpada é um tipo que invejamos?
Ela
sofre. E muito. Pois sente culpa de todas as espécies e por todos os
motivos. Acredita piamente que, por culpa sua, Adão e Eva causaram
aquele constrangimento e foram expulsos do Paraíso, prejudicando o
desenvolvimento da humanidade. E, sim, algum antepassado egípcio foi
responsável pelo êxodo e pelas pragas.
A
culpada recicla o lixo, pois sabe que, por sua causa, o mundo está
acabando. A culpada pertence a muitas ONGs. Uma delas planta árvores.
A culpada é Carbon Free, isto é, a sua existência não aquece o
planeta, pois ela calculou com exatidão quanto de carbono e metano
expele na atmosfera, e compensa o estrago aos fins de semana,
plantando ipês-amarelos e roxos.
Aliás,
ela está vendendo Crédito de Carbono, pois planta mais do que
gasta. Interessa?
A
culpada desconfia de que os golfinhos chineses foram extintos por sua
causa, pois ela, no passado, inocentemente, brincou com bonecas
chinesas e videogames chineses, usou roupas chinesas e escovou dentes
e cabelos com escovas adivinha de qual procedência? Apoiando a
indústria chinesa, sente-se responsável pela poluição do Yang Tse
e, portanto, pela extinção do golfinho chinês.
Ela
desconfia que a crise nas favelas cariocas dominadas pelo tráfico
também é culpa sua, já que a tal boneca, o tal videogame e as
escovas foram compradas sem a sua autorização de um camelô que
vendia produtos contrabandeados e piratas (genéricos), e ela hoje em
dia sabe muito que comprar produtos dessa procedência alimenta o
crime organizado, inclusive o organizado no Corinthians.
A
culpada acredita que há corrupção em Brasília, porque ela vota
mal. Que há poluição de São Paulo, porque ela queimou incenso na
fase hippie.
A
culpada vive dilemas intransponíveis: compra móveis de madeira e
imagina quantas florestas foram derrubadas, quantas araras azuis
estão sem um local seguro para abrigar seus ninhos, quantos
micos-leões não podem pular de árvore em árvore e correm o risco
de extinção por tristeza; mas se ela comprar móveis de plástico,
pergunta quantos séculos serão precisos para aquelas futilidades em
que se senta, dorme e come, conhecidas como cadeira, cama e mesa,
desintegrarem-se; se compra móveis reciclados, imagina crianças
esfomeadas, que deveriam estar nas escolas, nos lixões catando
detritos.
A
culpada acredita que os tênis são fabricados na Tailândia com o
uso de mão-de-obra escrava. Por isso, anda descalça. Não, ela
também não usa couro, já que a fronteira verde está sendo tomada
pelo gado, hectares de florestas estão sendo derrubadas para a
plantação de soja, que alimenta o mesmo gado que, num luxo
desnecessário, será transformado em sandálias, cintos e botas de
couro.
A
culpada não toma leite, porque sabe que o bovino é o maior emissor
de metano na atmosfera. Não toma seus equivalentes de soja, pois não
quer ver o Pantanal ser substituído por plantações extensivas do
grão.
A
culpada é a favor da cota para negros nas universidades. Pois ela
tem certeza de que a escravidão gerou lucro para algum parente seu.
Ela contribui com Israel, enviando dinheiro para lá, pois, por ter
olhos azuis, acredita que na 2ª Guerra teve parente seu envolvido.
Também contribui para a causa Palestina, já que, como contribui
para Israel, acha injusto não democratizar recursos.
Ela
se sente culpada pelo 11 de Setembro, pois quando era pequena e
viajou para a Disney, notou que a segurança dos aeroportos
americanos não foi rigorosa, já que não revistaram a sua boneca
chinesa, sem contar que os pilotos do avião a convidaram para
visitar a cabine, o que ela atendeu, levando sua escova de dente
chinesa, cujo cabo, pontudo e afiado, poderia ser usado para o mal.
Ela
deveria ter insistido com as autoridades, enviado cartas aos jornais,
feito de tudo, para alertar sobre as falhas.
A
culpada não tem animais de estimação. Retirar bichinhos da
natureza, no caso de cães e gatos, castrá-los? Logo ela que fez
passeata contra a clitoridectomia das Massai?
Ela
estudou História, para entender a humanidade, Psicologia, para
entender o indivíduo, e Saúde Pública, adivinha por quê?
Acabou
de se inscrever para uma faculdade de Direito. Perto da sua casa.
Para não queimar mais carbono. Porque culpada não paga meia,
utilizando o artifício da carteirinha falsificada. Prefere estudar
numa faculdade, para ter uma verídica, a ser acusada de causar danos
à indústria cultural e levar artistas à fome.
A
culpada profissional não tem filhos, pois sabe que se sentirá
culpada por não ficar mais tempo com as crianças. Ela não
conseguirá matricular o seu bebê de meses numa escola. Ela não
conseguirá usar fraudas não biodegradáveis. E não terá tempo
para lavar as de pano, cheias de substâncias que exalam metano, por
sinal. Só não sabemos se a culpada sente culpa por ser culpada.
Marcelo
Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz
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