Mulher,
às vezes aparece alguma; vêm por desfastio ou imaginação, essas
voluntárias; não voltam muitas vezes. Assusta-as, talvez, o ar
tranquilo com que as recebo, e a modéstia da casa.
Passarinho,
desisti de ter. É verdade, eu havia desistido de ter passarinhos;
distribuí-os pelos amigos; o último a partir foi o corrupião
Pirapora, hoje em casa do escultor Pedrosa. Continua a jogar, no
telhado de minha água-furtada, pedaços de miolo de pão. Isso atrai
os pardais; não gosto especialmente de pardais, mas também não
gosto de miolo de pão. Uma vez ou outra aparecem alguns tico-ticos;
nas tardes quentes, quando ameaça chuva, há um cruzar de andorinhas
no ar, em voos rasantes sobre o telhado do vizinho. Vem também, às
vezes, um casal de sanhaços; ainda esta manhã, às 5h15m, ouvi
canto de sanhaço lá fora; frequentam ou uma certa antena de
televisão (sempre a mesma) ou o pinheiro-do-paraná que sobe,
vertical, até a minha varanda. Fora disso, há, como em toda parte,
bem-te-vis; passam gaivotas, mais raramente urubus. Quando me lembro,
mando a empregada comprar quirera de milho para as rolinhas andejas.
Mas
a verdade é que um homem, para ser solteiro, não deve ter
passarinho em casa; o melhor de ser solteiro é ter sossego quando se
viaja; viajar pensando que ninguém vai enganar a gente nem também
sofrer por causa da gente; viajar com o corpo e a alma, o coração
tranquilo.
Pois
nesse dia eu ia mesmo viajar para Belo Horizonte, tinha acabado de
arrumar a mala, estava assobiando distraído, vi um passarinho pousar
no telhado. Pela cor não podia ser nenhum freguês habitual; fui
devagarinho espiar. Era um canário; não um desses
canarinhos-da-terra que uma vez ou outra ainda aparece um, muito
raro, extraviado, mas um canário estrangeiro, um roller, desses
nascidos e criados em gaiola. Senti meu coração bater quase com
tanta força como se me tivesse aparecido uma dama loura no telhado.
Chamei a empregada: “Vá depressa comprar uma gaiola, e alpiste…”
Quando
a empregada voltou, o canarinho já estava dentro da sala; ele e eu,
com janelas e portas fechadas. Se quiserem que explique o que fiz
para que ele entrasse eu não saberei. Joguei pedacinhos de miolo de
pão na varanda; assobiei para dentro; aproximei-me do telhado bem
devagarinho, longe do ponto em que ele estava, murmurei muito baixo:
“Entra, canarinho…” Pus um pires com água ali perto. Que foi
que o atraiu? Sei apenas que ele entrou; suponho que tenha ficado
impressionado com meus bons modos e com a doçura de meu olhar.
Dentro
da sala fechada (fazia calor, estava chegando a hora de eu ir para o
aeroporto) ficamos esperando a empregada com a gaiola e o alpiste. O
que fiz para ele entrar na gaiola também não sei; andou pousado na
cabeça de Baby, a finlandesa (terracota de Ceschiatti); fiquei
completamente imóvel, imaginando – quem sabe, a esta hora, em
Paris ou onde andar, a linda Baby é capaz de ter tido uma ideia
engraçada, por exemplo: “Se um passarinho pousasse em minha cabeça
…”
Depois
desceu para estante, voou para cima do bar. Consegui colocar a gaiola
(com a portinhola aberta, presa por um barbante) bem perto dele, sem
que ele notasse; andei de quatro, rastejei, estalei os dedos,
assobiei – venci. Quando telefonei para o táxi ele já tinha
bebido água e comido alpiste, e estava cantando que era uma beleza.
Está
cantando neste momento. Por um anel de chumbo que tem preso à pata
já o identifiquei, telefonando para a Associação de Criadores de
Rollers: nasceu em 1959 e seu dono mudou-se para Brasília.
Naturalmente deixou-o de presente para algum amigo, que não soube
tomar conta dele. (Seria o milionário assassinado da Toneleros? Um
dos assaltantes carregou dois canários e depois os soltou, com
medo.)
Está
cantando agora mesmo; como canta macio, melodioso, variado, bonito…
Agora pára de cantar e fica batendo as asas de um modo um pouco
estranho. Telefono para um amigo que já criou rollers, pergunto o
que isso quer dizer. “Ele está querendo casar, homem: é a
primavera…”
Casar!
O verbo me espanta. Tão gracioso, tão pequenininho, e já com essas
ideias!
Abano
a cabeça com melancolia; acho que vou dar esse passarinho à minha
irmã, de presente. É pena, eu já estava começando a gostar dele;
mas quero manter nesta casa um ambiente solteiro e austero; e se for
para abrir exceção para um canarinha estarei criando um precedente
perigoso. Com essas coisas não se brinca. Adeus, canarinho.
Rubem
Braga, in 200
crônicas selecionadas
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