—
Patrãozinho, me dê uma prata.
— Pra
que você quer dinheiro, homem? — disse o menino.
— Me
dê uma prata para eu tomar uma.
— Não
vai trabalhar? Papai está te esperando.
— Eu
vou mas é tomar uma.
— Tome
duas e caia logo de vez — disse o menino, pondo as duas moedas na
mão do homem e se retirando.
— Deus
te ajude, patrãozinho.
Era
terça-feira e era o fim de tudo — e o último ser vivo do mundo
estava caindo de bêbado, nem bem o sol havia raiado.
Agora
não havia mais missa nem feira nem barraca nem pão-de-ló e a rua
voltou a ser o que sempre foi: uma solidão única.
O
menino percebeu isso ao acordar. Estava sozinho. Como o padre, todos
haviam retornado a suas casas de verdade, fazendolas e casebres
miseráveis das redondezas que, se somadas, davam mais de sete
léguas. Até tio Ascendino, o último dos beatos (o bêbado não
contava), tinha abandonado o seu posto e retornado à sua marcenaria.
Agora só lhe restava o caminho da roça. O pior não era a solidão.
Era a fome. E assim, com as tripas roncando e esfregando os dedos nos
olhos para limpar a remela, o menino foi descendo para
a venda de Josias Cardoso. Ia comprar um pão de água e sal ou mesmo
um pão de milho. Agora podia comprar o que quisesse, porque as três
notas que o padre lhe dera compravam muitas coisas. Mas ia devagar.
Lá na roça seu pai o aguardava com uma enxada.
Felizmente
não sobraram apenas o menino, o bêbado e o dono da venda. Também
havia Nego de Roseno e sua fubica parada na porta do armarinho. A
fubica era um pouco mais do que o veículo que transportava uma pança
negra cheia de níqueis dos roceiros. Era o único orgulho motorizado
do Junco — e o prêmio justo para um homem que passara toda uma
vida carregando suas mercadorias no lombo de um burro. O menino
também estava fascinado com o progresso desse homem e chegava mesmo
a invejar-lhe a liberdade de poder rodar para cima e para baixo na
boléia daquele caminhãozinho que, mesmo quebrando e atolando nas
estradas, acabava sempre chegando a algum destino. E talvez fosse
isso o que ele estivesse querendo dizer, nesse momento. Imóvel
dentro do armarinho, como se fosse mais um dos caixotes que Nego de
Roseno tentava mudar de posição, o menino agora admirava a maneira
delicada como ele, um homenzarrão desengonçado, arrumava os frascos
de cheiro nas prateleiras. E foi então que Nego de Roseno falou.
Queria alguma coisa? Queria, sim. Aquela camisa ali, quanto é?
Custava
mais do que o dinheiro que ele tinha, mas Nego de Roseno deixou pelo
dinheiro que ele tinha.
— Seu
pai é um bom freguês — disse. — Vou lhe fazer um desconto.
Seu
pai. Agora precisava inventar uma boa mentira para contar em casa.
Por que você demorou tanto? Porque...
Talvez
levasse uma surra.
Mas
tinha dois pães numa mão e uma camisa nova na outra — e isso, por
enquanto, era o que importava.
Uma
camiseta branca, de mangas cavadas (diferente, moderna), a primeira
coisa na vida que comprava com o seu próprio dinheiro. Também não
mandou pôr os pães na conta do pai, como das outras vezes. O
problema é que sua alegria não estava sendo maior que o seu medo.
Quem mandou demorar tanto?
Quando
chegou à marcenaria, tio Ascendino ainda cantava benditos. Era um
velho muito só que vivia rezando e praguejando contra as maldades do
mundo. Tio Ascendino parou de cantar, parou a enxó, ajeitou os
suspensórios e mostrou um caminhão azul para o menino.
— Fiz
este para você. Gosta da cor azul?
O
menino ofereceu um de seus pães para o tio e tio Ascendino
aproveitou para fazer um café. Enquanto esperava, e agora com uma
alegria redobrada, por causa do presente, trocou de camisa.
— Só
está é um pouco folgada — disse tio Ascendino. — Mas não faz
mal. Quando lavar, ela encolhe. E você está crescendo.
Esquecido
do tempo e da enxada e da possibilidade de uma surra, o menino
conversou muito, como se fosse um bom companheiro para o tio.
— Esta
terra só se alegra quando tem missa, não é?
— É
a pura verdade — disse tio Ascendino. — É uma pena só ter missa
de tempos em tempos. Já estamos precisando de um padre que more aqui
e que celebre missa pelo menos todos os domingos.
—
Também acho — disse o menino.
— E
você, quando vai para o seminário?
— Não
sei, não, tio.
—
Quando vejo você ajudando o padre, tão
bonito, fico pedindo a Deus para ver você um dia metido numa batina.
Ia ser o maior orgulho deste lugar. Mas talvez eu não viva tanto
para ver isso.
Há
uma certa hora no Junco que dá para se ouvir um carro de bois
cantando do outro lado do universo. Entre 11 da manhã e 3 da tarde o
sol treme e até as cigarras param de piar. O menino ia pela estrada
atento aos buracos. Atento ao barulho das rodas de seu caminhãozinho,
que ele empurrava com uma forquilha.
O
presente do tio também serviu de perdão para a sua demora. O que
não lhe perdoaram foi o fato de ele ter dado o seu dinheiro numa
camisa que não valia nada. Burro. Burro e besta. Seu pai ordenou:
— Volte
lá e devolva isto. Traga o dinheiro de volta.
Tinha
que voltar à rua. Não havia outro jeito. No caminho, pedia a Deus
que lhe jogasse na frente as três notas que ganhara do padre e que
agora se encontravam nas mãos de Nego de Roseno. Se isso
acontecesse, ele poria a camisa fora e voltava para casa sem ter que
enfrentar o dono do armarinho. Era uma humilhação ter que se
desfazer de um negócio que fizera por sua livre vontade. Mas se Deus
não o iria socorrer, muito menos Nego de Roseno. Pediu o apoio de
Dirce, com os olhos molhados. Dirce não se moveu. Pediu o apoio de
Neguinho, que um dia havia caído a seus pés, no meio da rua,
durante um ataque de epilepsia. Neguinho também não disse nada. Que
espécie de homem ele era?, perguntava Nego de Roseno. Comprava uma
coisa e depois se arrependia? Além do mais, a camisa estava melada
de suor. Em casa, além da enxada, agora o aguardava uma nova bateria
de ameaças e descomposturas. E esse incidente iria perturbar-lhe o
sono durante um largo tempo da sua vida.
Como
no dia em que Neguinho se jogou no tanque velho e morreu afogado,
para se vingar de um tapa que levara do pai. Em seus sonhos, o menino
via Neguinho se debatendo e espumando no chão, com os olhos
arregalados e suplicantes, como se estivesse lhe pedindo socorro.
Essa cena iria se repetir noites a fio, por mais que o menino rezasse
pela alma de Neguinho.
Só
muito depois, quando a camisa já estava rasgada e não servia mais
para nada, foi que ele deu o caso por encerrado.
Uma
noite seu pai voltou um pouco tarde da rua e ficou conversando com
sua mãe. Estava contando a respeito do que ouvira uns homens dizer
sobre o menino.
—
Estava eu, Josias, compadre Zeca e Nego
de Roseno.
O
menino ficou de orelha em pé. Ainda não haviam se esquecido daquela
coisa.
— Aí
Nego de Roseno disse: dá gosto ouvir aquele menino falar. Aquele
menino é um homem — contava o velho. — Os outros, todos,
disseram a mesma coisa.
Agora,
sim. Seu pai estava orgulhoso.
O
filho dele era um homem, segundo Nego de Roseno.
Antônio
Torres,
in Meninos,
eu conto
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