Fotograma do filme Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos
Olhou
de novo os pés espalmados. Efetivamente não se acostumava a calçar
sapatos, mas o remoque de Fabiano molestara-a. Pés de papagaio. Isso
mesmo, sem dúvida, matuto anda assim. Para que fazer vergonha à
gente? Arreliava-se com a comparação.
Pobre
do papagaio. Viajar com ela, na gaiola que balançava em cima do baú
de folha. Gaguejava: - “Meu louro.” Era o que sabia dizer. Fora
isso, aboiava arremedando Fabiano e latia como Baleia. Coitado. Sinha
Vitória nem queria lembrar-se daquilo. Esquecera a vida antiga, era
como se tivesse nascido depois que chegara à fazenda. A referência
aos sapatos abrira-lhe uma ferida - e a viagem reaparecera. As
alpercatas dela tinham sido gastas nas pedras. Cansada, meio morta de
fome, carregava o filho mais novo, o baú e a gaiola do papagaio.
Fabiano era ruim.
-
Mal-agradecido.
Olhou
os pés novamente. Pobre do louro. Na beira do rio matara-o por
necessidade, para sustento da família. Naquele momento ele estava
zangado, fitava na cachorrinha as pupilas sérias e caminhava aos
tombos, como os matutos em dias de festa. Para que Fabiano fora
despertar-lhe aquela recordação? Chegou à porta, olhou as folhas
amarelas das catingueiras. Suspirou. Deus não havia de permitir
outra desgraça. Agitou a cabeça e procurou ocupações para
entreter-se. Tomou a cuia grande, encaminhou-se ao barreiro, encheu
de água o caco das galinhas, endireitou o poleiro. Em seguida foi ao
quintalzinho regar os craveiros e as panelas de losna. E botou os
filhos para dentro de casa, que tinham barro até nas meninas dos
olhos. Repreendeu-os: - Safadinhos! porcos! sujos como... Deteve-se.
Ia dizer que eles estavam sujos como papagaios.
Os
pequenos fugiram, foram enrolar-se na esteira da sala, por baixo do
caritó, e Sinha Vitória voltou para junto da trempe, reacendeu o
cachimbo. A panela chiava; um vento morno e empoeirado sacudia as
teias de aranha e as cortinas de pucumã do teto; Baleia, sob o
jirau, coçava-se com os dentes e pegava moscas. Ouviam-se
distintamente os roncos de Fabiano, compassados, e o ritmo deles
influiu nas ideias de Sinha Vitória. Fabiano roncava com segurança.
Provavelmente não havia perigo, a seca devia estar longe.
Outra
vez Sinha Vitória pôs-se a sonhar com a cama de lastro de couro.
Mas o sonho se ligava à recordação do papagaio, e foi-lhe preciso
um grande esforço para isolar o objeto de seu desejo.
Tudo
ali era estável, seguro. O sono de Fabiano, o fogo que estalava, o
toque dos chocalhos, até o zumbido das moscas davam-lhe sensação
de firmeza e repouso. Tinha de passar a vida inteira dormindo em
varas? Bem no meio do catre havia um nó, um calombo grosso na
madeira. E ela se encolhia num canto, o marido no outro, não podiam
estirar-se no centro. A princípio não se incomodara. Bamba, moída
de trabalhos, deitar-se-ia em pregos. Viera, porém, um começo de
prosperidade. Corriam, engordavam. Não possuíam nada: se
retirassem, levariam a roupa, a espingarda, o baú de folha e troças
miúdos. Mas iam vivendo, na graça de Deus, o patrão confiava neles
- e eram quase felizes. Só faltava uma cama. Era o que aperreava
Sinha Vitória. Como já não se estazava em serviços pesados,
gastava um pedaço da noite parafusando. E o costume de encafuar-se
ao escurecer não estava certo, que ninguém é galinha.
Nesse
ponto as ideias de Sinha Vitória seguiram outro caminho, que pouco
depois foi desembocar no primeiro. Não era que a raposa tinha
passado no rabo a galinha pedrês? Logo a pedrês, a mais gorda.
Decidiu armar um mundéu perto do poleiro. Encolerizou-se. A raposa
pagaria a galinha pedrês.
-
Ladrona.
Pouco
a pouco a zanga se transferiu. Os roncos de Fabiano eram
insuportáveis. Não havia homem que roncasse tanto. Era bom
levantar-se e procurar uma vara para substituir aquele pau
amaldiçoado que não deixava uma pessoa virar-se. Porque não tinham
removido aquela vara incômoda? Suspirou. Não conseguiam tomar
resolução. Paciência. Era melhor esquecer o nó e pensar numa cama
igual à de seu Tomás da bolandeira. Seu Tomás tinha uma cama de
verdade, feita pelo carpinteiro, um estrado de sucupira alisado a
enxó, com as juntas abertas a formão, tudo embutido direito, e um
couro cru em cima, bem esticado e bem pregado. Ali podia um cristão
estirar os ossos.
Se
vendesse as galinhas e a marrã? Infelizmente a excomungada raposa
tinha comido a pedrês, a mais gorda. Precisava dar uma lição à
raposa. Ia armar o mundéu junto do poleiro e quebrar o espinhaço
daquela sem-vergonha.
Ergueu-se,
foi a camarinha procurar qualquer coisa, voltou desanimada e
esquecida. Onde tinha a
cabeça? Sentou-se na janela baixa da cozinha, desgostosa. Venderia
as galinhas e a marrã, deixaria de comprar querosene. Inútil
consultar Fabiano, quesempre se entusiasmava, arrumava projetos.
Esfriava logo - e ela franzia a testa, espantada; certa de que o
marido se satisfazia com a ideia de possuir uma cama. Sinha Vitória
desejava uma cama real, de couro e sucupira, igual à de seu Tomás
da bolandeira.
Graciliano
Ramos, in Vidas
Secas
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