Poça D'água, de M. C. Escher
O
senso comum identifica o “infantil” com o “pueril”. Adulto no
qual mora uma criança não é digno de confiança. O ideal é o
homem maduro, que abandonou as coisas de criança, que trocou o
brinquedo pelo trabalho. A psicanálise concorda: o “infantil” é
o regressivo, sintoma neurótico a ser analisado.
Na
minha psicanálise, os desejos infantis são desejos eternos e
divinos. O infantil não é o regressivo: é o eterno, o que sempre
foi, o que sempre será, o objeto da saudade e da nostalgia, o objeto
perdido que se espera reencontrar no futuro. É dos desejos infantis
que surge a poesia. A criança e o poeta falam a mesma língua.
Lá
vão pelo caminho a mãe e a criança, que vai sendo arrastada pelo
braço — segurar pelo braço é mais eficiente que segurar pela
mão. Vão as duas pelo mesmo caminho, mas não vão pelo mesmo
caminho. Pois eu digo que o caminho por que anda a mãe não é o
mesmo caminho por que anda a criança. Os olhos da criança vão como
borboletas, pulando de coisa em coisa, para cima, para baixo, para os
lados, tudo é espantoso, tudo é divertido. Pena que a mãe não
veja nada do que a criança vê porque seus olhos desaprenderam a
arte de ver como quem brinca, ela tem muita pressa, é preciso
chegar, há coisas urgentes a fazer, seu pensamento está nas
obrigações de dona de casa, por isso vai dando safanões nervosos
na criança... Olhando fixamente para o chão, ela procura as pedras
no meio do caminho, não por amor ao Drummond, mas para não dar
topadas, e procura também as poças d’água, não porque tenha se
comovido com o lindo desenho do Escher de nome Poça d’água,
uma poça de água suja na qual se refletem o céu azul e os ramos
verdes dos pinheiros; ela procura as poças para não sujar o sapato.
A pedra do Drummond e a poça de água suja do Escher os adultos não
veem, só as crianças e os artistas.
Rubem
Alves, in Do universo à jabuticaba
Nenhum comentário:
Postar um comentário