segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Gênesis (trecho)

No princípio, era o chão.
No piso do quintal, ladrilhado com cacos de cerâmica vermelha, via um elefante de três pernas, um navio, um homem de chapéu fumando cachimbo. Na manhã seguinte, as imagens haviam mudado: o homem de chapéu era um bolo mordido; o elefante, parte de um olho enorme — a tromba, um cílio —; o navio zarpara, deixando para trás apenas cacos de cerâmica vermelha no piso do quintal.
Na sala, com uma tampa de Bic levantava os tacos soltos para espiar o que se escondia embaixo: uma mosca morta, uma unha cortada, um grampo — pequenos achados arqueológicos, estudados com perícia através da lupa.
Deitado, a bochecha colada à madeira, sentindo no rosto a brisa fria que sopra ao rés do chão, espiava o vão escuro sob a cristaleira: a poeira formava tufos, matéria-prima da qual, acreditava, era feito o cobertor cinzento do mendigo da esquina. Tinha sua lógica: o homem miserável coberto pela manta de pó. Só não compreendia como a sujeira se transformava em tufo, o tufo em cobertor, e o cobertor ia parar em volta do mendigo. Mais um mistério, entre tantos deste mundo.
No princípio, eram as trevas.
Antonio Prata, in Nu, de botas

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