No
princípio, era o chão.
No
piso do quintal, ladrilhado com cacos de cerâmica vermelha, via um
elefante de três pernas, um navio, um homem de chapéu fumando
cachimbo. Na manhã seguinte, as imagens haviam mudado: o homem de
chapéu era um bolo mordido; o elefante, parte de um olho enorme —
a tromba, um cílio —; o navio zarpara, deixando para trás apenas
cacos de cerâmica vermelha no piso do quintal.
Na
sala, com uma tampa de Bic levantava os tacos soltos para espiar o
que se escondia embaixo: uma mosca morta, uma unha cortada, um grampo
— pequenos achados arqueológicos, estudados com perícia através
da lupa.
Deitado,
a bochecha colada à madeira, sentindo no rosto a brisa fria que
sopra ao rés do chão, espiava o vão escuro sob a cristaleira: a
poeira formava tufos, matéria-prima da qual, acreditava, era feito o
cobertor cinzento do mendigo da esquina. Tinha sua lógica: o homem
miserável coberto pela manta de pó. Só não compreendia como a
sujeira se transformava em tufo, o tufo em cobertor, e o cobertor ia
parar em volta do mendigo. Mais um mistério, entre tantos deste
mundo.
No
princípio, eram as trevas.
Antonio
Prata, in Nu, de botas
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