quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Trabalhar forçado, não!

Manuel encostou-se no cepo da bigorna, trançou as pernas, cruzou os braços, contou o caso do conserto da carroça. Quando terminou, Apolinário deu mais umas bombadas no fole, atiçou os carvões.
Está aí uma coisa que eu não fazia — disse por fim. — Trabalhar forçado, não tem perigo que o degas aqui não trabalha.
Manuel sorriu triste, desapontado por não poder dizer o mesmo. Ele também pensava assim antes, mas teve de ceder. Quanto tempo Apolinário resistiria?
Você não conhece aquela gente, Apolinário. Eles cercam de todo lado, apertam, põem a gente numa roda-viva. Você vai ver.
Apolinário olhou-o rápido, desconfiado. Então ele sabia do recado?
Comigo perdem o tempo. Meu ofício é malhar ferro.
Manuel pensou no seu ofício de cortar madeira, comparou os dois materiais. A diferença teria algum efeito na resistência das pessoas que lidam com um e outro? Bobagem. Pau é pau, ferro é ferro; e gente é gente. Um homem vai ser ferreiro ou carpinteiro ou sapateiro é por acaso, como aconteceu com ele, Manuel. O pai era carpinteiro, ele teve também de aprender o ofício, para ajudar; não podia ficar o tempo todo zanzando sem ocupação. Vai ver que com Apolinário aconteceu do mesmo jeito. Mas será que não entra a força da vocação? Muitos rapazes quiseram aprender carpintagem com ele, mexeram, viraram, largaram; não aprendiam nem pegar as ferramentas.
E será também que o costume de lidar sempre com o mesmo material entra ano sai ano não vai influindo na alma da pessoa, contagiando moleza ou dureza? Reparando bem, parece que cada um vai apanhando cara do ofício que desempenha.
Pensando nisso ele olhou para Apolinário. A cara cheia, quadrada, de carne dura, parece que posta em pedacinhos, acalcados à força; a testa larga, com um caroço de cada lado, como inchaços encravados; o nariz grande bem enterrado na cara, os olhos pequenos para não gastar muito espaço; o queixo largo, de ponta entortada para a frente; o pescoço quase da grossura da cabeça. Essa cara de Apolinário não poderia nunca ser cara de latoeiro, por exemplo. Latoeiro era João José, miudinho, ratinho, ombros estreitos de menino, mãos miúdas, não precisavam ser grandes para cortar folha, coisa tão mole. João José, enroladinho, lustroso, resmungão, de vez em quando se rebelando e arranhando os que lidam com ele.
E ele, Manuel? Mole como madeira no ferro? Às vezes querendo fingir dureza, inventando nós que a ferramenta não respeita, passa por cima e iguala? As mãos do carpinteiro, o corpo, a alma do carpinteiro não podem ser mais brutos do que a madeira. Em madeira não se trabalha batendo com força, com raiva; só lenheiro faz isso, mas lenheiro é quase igual ao machado que ele levanta e abaixa sem dó, sem consideração: basta olhar a cara de um lenheiro para se ver que ele não tem delicadeza nem tato: não precisa.
Ferreiro também trabalha batendo, pondo força. Mas tem uma diferença: ele tem uma medida a encher, um ponto a chegar, uma ideia a seguir; não bate para cortar nem rachar, bate para achatar, arredondar, conformar. Ferreiro trabalha fazendo, não desmanchando; e se desmancha é para fazer de outro jeito. Na brutalidade do ferreiro tem uma delicadeza escondida.
Manuel olhou novamente para Apolinário, notou a delicadeza das mãos fortes — tranquilizou-se. Apolinário ia dar muito trabalho antes de ceder; talvez nem cedesse. Seria bom, porque aquela gente estava mesmo precisando de uma lição.
Cuidado com eles, Apolinário. Aquilo é gente manhosa.
Tem nada não. Manha comigo não forma.
Manuel gostou de ouvir isso. Era uma garantia de que os homens não iam fazer um piquenique no quintal de Apolinário.
Quando é que eu venho apanhar a minha cunha?
Hoje mesmo fica pronta. Se eu sair de noite, deixo lá pra você. Manuel despediu-se e saiu feliz por dentro. Apolinário ia dar trabalho aos homens.
José J. Veiga, in A hora dos ruminantes

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