“Manuel
encostou-se no cepo da bigorna, trançou as pernas, cruzou os braços,
contou o caso do conserto da carroça. Quando terminou, Apolinário
deu mais umas bombadas no fole, atiçou os carvões.
—
Está
aí uma coisa que eu não fazia — disse por fim. — Trabalhar
forçado, não tem perigo que o degas aqui não trabalha.
Manuel
sorriu triste, desapontado por não poder dizer o mesmo. Ele também
pensava assim antes, mas teve de ceder. Quanto tempo Apolinário
resistiria?
—
Você
não conhece aquela gente, Apolinário. Eles cercam de todo lado,
apertam, põem a gente numa roda-viva. Você vai ver.
Apolinário
olhou-o rápido, desconfiado. Então ele sabia do recado?
—
Comigo
perdem o tempo. Meu ofício é malhar ferro.
Manuel
pensou no seu ofício de cortar madeira, comparou os dois materiais.
A diferença teria algum efeito na resistência das pessoas que lidam
com um e outro? Bobagem. Pau é pau, ferro é ferro; e gente é
gente. Um homem vai ser ferreiro ou carpinteiro ou sapateiro é por
acaso, como aconteceu com ele, Manuel. O pai era carpinteiro, ele
teve também de aprender o ofício, para ajudar; não podia ficar o
tempo todo zanzando sem ocupação. Vai ver que com Apolinário
aconteceu do mesmo jeito. Mas será que não entra a força da
vocação? Muitos rapazes quiseram aprender carpintagem com ele,
mexeram, viraram, largaram; não aprendiam nem pegar as ferramentas.
E
será também que o costume de lidar sempre com o mesmo material
entra ano sai ano não vai influindo na alma da pessoa, contagiando
moleza ou dureza? Reparando bem, parece que cada um vai apanhando
cara do ofício que desempenha.
Pensando
nisso ele olhou para Apolinário. A cara cheia, quadrada, de carne
dura, parece que posta em pedacinhos, acalcados à força; a testa
larga, com um caroço de cada lado, como inchaços encravados; o
nariz grande bem enterrado na cara, os olhos pequenos para não
gastar muito espaço; o queixo largo, de ponta entortada para a
frente; o pescoço quase da grossura da cabeça. Essa cara de
Apolinário não poderia nunca ser cara de latoeiro, por exemplo.
Latoeiro era João José, miudinho, ratinho, ombros estreitos de
menino, mãos miúdas, não precisavam ser grandes para cortar folha,
coisa tão mole. João José, enroladinho, lustroso, resmungão, de
vez em quando se rebelando e arranhando os que lidam com ele.
E
ele, Manuel? Mole como madeira no ferro? Às vezes querendo fingir
dureza, inventando nós que a ferramenta não respeita, passa por
cima e iguala? As mãos do carpinteiro, o corpo, a alma do
carpinteiro não podem ser mais brutos do que a madeira. Em madeira
não se trabalha batendo com força, com raiva; só lenheiro faz
isso, mas lenheiro é quase igual ao machado que ele levanta e abaixa
sem dó, sem consideração: basta olhar a cara de um lenheiro para
se ver que ele não tem delicadeza nem tato: não precisa.
Ferreiro
também trabalha batendo, pondo força. Mas tem uma diferença: ele
tem uma medida a encher, um ponto a chegar, uma ideia a seguir; não
bate para cortar nem rachar, bate para achatar, arredondar,
conformar. Ferreiro trabalha fazendo, não desmanchando; e se
desmancha é para fazer de outro jeito. Na brutalidade do ferreiro
tem uma delicadeza escondida.
Manuel
olhou novamente para Apolinário, notou a delicadeza das mãos fortes
— tranquilizou-se. Apolinário ia dar muito trabalho antes de
ceder; talvez nem cedesse. Seria bom, porque aquela gente estava
mesmo precisando de uma lição.
—
Cuidado
com eles, Apolinário. Aquilo é gente manhosa.
—
Tem
nada não. Manha comigo não forma.
Manuel
gostou de ouvir isso. Era uma garantia de que os homens não iam
fazer um piquenique no quintal de Apolinário.
—
Quando
é que eu venho apanhar a minha cunha?
—
Hoje
mesmo fica pronta. Se eu sair de noite, deixo lá pra você. Manuel
despediu-se e saiu feliz por dentro. Apolinário ia dar trabalho aos
homens.”
José
J. Veiga,
in A
hora dos ruminantes
Nenhum comentário:
Postar um comentário