Outro
dia me perguntaram qual era o filme da minha vida. Sem pensar muito,
hesitando entre Vagas estrelas da Ursa, de Visconti, e
Paisagem na neblina, de Theo Angelopoulos, respondi A
história de Adèle H., de François Truffaut. Mais tarde,
pensando melhor, decidi: o filme da minha vida na verdade é La
strada, de Fellini. Nada me comoveu tanto no cinema quanto aquela
Gelsomina de Giulietta Masina, misto de clown e pivete, louca
e duende.
Mas
se me perguntassem sobre o livro da minha vida, eu não hesitaria um
segundo. Esse livro chegou às minhas mãos de maneira meio
misteriosa. Eu devia ter uns 9 ou 10 anos quando meu pai apareceu com
uma daquelas listas de nome tipo pirâmide (anos atrás foi moda uma
com dinheiro, que resultou em mil trambiques, lembram?) — você
mandava um livro para o primeiro da lista, colocava seu nome no
final, passava a lista para mais três pessoas, semanas depois
recebia dezenas de livros. Bom, fiz tudo certo. Mas recebi, nem sei
de quem, apenas um livro: era A pequena princesa, de Frances Burnett,
se não me engano editado pela Melhoramentos, que devorei em poucos
dias, encantado.
Era
a história de Sarah Crewe, menina nascida na Índia, órfã de mãe
indiana e filha de um nobre inglês. Esse nobre está metido num
negócio de minas de diamante na Índia, e deixa Sarah no rico
internato da cruel Miss Minchin, em Londres. Sarah quer ser
escritora, adora ler e contar histórias para as colegas, algumas
muito najas (Lavínia e Jessie), que, como boas inglesinhas racistas,
desprezam sua pele morena e cabelos negros. Sarah faz amizade também
com Becky, a criadinha escrava de Miss Minchin. Lá pelas tantas, o
pai de Sarah morre na Índia de uma doença tropical, sem achar os
tais diamantes. Sarah f i ca na miséria. Miss Minchin a obriga a
viver na mansarda gelada do sótão, pleno inverno. A pobre Sarah,
mais cadela que Becky, sai à rua em frangalhos, com fome, descalça
na neve. Sofre horrores, mas continua do bem, sempre inventando
histórias com final feliz. Para a casa ao lado, então, muda uma
família enorme e cheia de crianças, também vinda da Índia. Na
sórdida mansarda de Sarah começam a aparecer misteriosamente
tapetes, poltronas, livros, comida, roupas. Para encurtar a história:
as crianças da família são encantadas com a finura de Sarah, a
quem chamam de “a menina que não é mendiga”, e fazem o criado
indiano Ram Dass entrar escondido pela janela para co locar presentes
no quarto dela. No final, descobre-se: o pai da tal família era
sócio de um nobre inglês num negócio de minas de diamantes na
Índia, e veio para Londres à procura da herdeira, que está
riquíssima. Sarah é essa herdeira, claro. Vai morar com a família,
leva Becky consigo, e todos vivem felizes para sempre. Como em toda
história antiga que se preze.
Em
muitas mudanças, e já em frangalhos — eu não me separava dele —,
meu livro acabou se perdendo. Em Londres, procurei-o várias vezes
sem encontrar, esgotado há décadas. Só uma vez, num sebo em
Portobello Road, achei uma primeira edição rara e caríssima, que
eu não tinha dinheiro para comprar. Semana passada, peguei na
locadora o vídeo de O jardim secreto, de Agnieszka Holland. E
lá estava — o filme, que é lindo, foi baseado em livro de Frances
Hodgson Burnett, que deve ser a mesma autora de A pequena
princesa. Mas quem foi afinal essa maravilhosa escritora, a
necessidade da fantasia e o poder transformador do sonho?
Se
alguém souber, me diga, preciso saber. E agora acabei de lembrar que
tenho alguns amigos vivendo em Londres, vou escrever pedindo a eles
que persigam também a pista dessa escritora. Se descobrir, e espero
que sim, conto logo a vocês.
Caio
Fernando Abreu, in Pequenas epifanias
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