Meu
avô, arrastando solidão, escrevia nas paredes da casa. As palavras
abrandavam sua tristeza, organizavam sua curiosidade silenciosamente.
Grafiteiro, afiava o lápis como fazia com navalha. A cidade era seu
assunto: amores desfeitos, madrugadas e fugas, casamentos traições,
velórios, heranças. Contornava objetos: serrote, tesoura, faca,
machado – e ainda escrevia dentro dos desenhos um pouco do destino
de cada coisa; o serrote sumiu, a tesoura quebrou, o machado perdeu o
corte. Eu, devagarinho, fui decifrando sua letra, amarrando as
palavras e amando seus significados. Meu avô era um construtivista
(sem conhecer nem a Emília do Lobato) pela sua capacidade de não
negar sentido às coisas. Tudo lhe servia de pretexto.
Eu
restava horas sem fim, de coração aflito, seduzido pelas histórias
de amor, pelo desafeto, de ingratidão, de mentiras do meu primeiro
livro – as paredes da casa de meu avô. Assim, percebi o serviço
das palavras – facas de dois gumes. Meu avô desdizia verdades
eternas com as mesmas palavras com que escreveram a Bíblia Sagrada:
“A bondade de Deus só não deu asa à cobra porque a cobra não
cobrou; à noite todos os pardos são gatos; para quem sabe ler, um
pingo nunca foi letra; em casa de ferreiro pobre, até o espeto é de
pau porque não tem nem fogo”. Essa sua capacidade de negociar com
as palavras, de buscar seus avessos, me atordoava e me seduzia.
Meu
avô poderia ter sido meu primeiro professor se fizesse plano de
aula, ficha de avaliação, tivesse licenciatura plena. O fato é que
ele não aplicava prova, não passava dever de casa nem brincava de
exercício de coordenação motora. Jamais me pediu que acompanhasse
o caminho que o coelhinho fazia para comer a cenourinha nem me deu
flor para colorir. Minha coordenação motora eu desenvolvi andando
sobre muros ou pernas de pau, subindo em árvores, acertando as
frutas com estilingue ou enfiando linha na agulha para minha avó
chulear. Também, coelho não usava ainda nem na Páscoa, ocasião em
que se comungava coordenando a hóstia para não esbarrar nos dentes
nem grudar no céu da boca. Meu avô escancarava o mundo com letra
bonita e me deixava livre para desvendar sua escritura.
Mesmo
assim, cada dia eu conhecia mais palavras e mais distâncias,
combinando melhor as orações. E suas paredes mais se enchiam de
avisos sobre o mundo e as fronteiras do mundo. Eu decorava tudo e
repetia timidamente. Eram tranquilas
suas aulas, e o maior encanto estava em meu avô cultivar as dúvidas.
Se ele escrevia “o mundo é uma bola besta sem eira nem beira”,
eu desconfiava se estava dizendo ser a Terra redonda ou se a Terra
era uma piada sem tamanho. Eu concluía ser as duas coisas. Às vezes
ele me pegava esticando o pescoço, tentando alcançar um pedaço
mais longo, um parágrafo mais alto. Ele me apontava a cadeira. Eu
buscava e ele me ajudava a subir. Minha avó gritava: “Menino,
desça daí, esse velho não é certo nem dá certeza”.
Meu
avô voltava para a janela e continuava lendo o mundo, seu único e
maior livro.
Bartolomeu
Campos de Queirós, in Foram tantos, os professores
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