sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Meu avô, construtivista

Meu avô, arrastando solidão, escrevia nas paredes da casa. As palavras abrandavam sua tristeza, organizavam sua curiosidade silenciosamente. Grafiteiro, afiava o lápis como fazia com navalha. A cidade era seu assunto: amores desfeitos, madrugadas e fugas, casamentos traições, velórios, heranças. Contornava objetos: serrote, tesoura, faca, machado – e ainda escrevia dentro dos desenhos um pouco do destino de cada coisa; o serrote sumiu, a tesoura quebrou, o machado perdeu o corte. Eu, devagarinho, fui decifrando sua letra, amarrando as palavras e amando seus significados. Meu avô era um construtivista (sem conhecer nem a Emília do Lobato) pela sua capacidade de não negar sentido às coisas. Tudo lhe servia de pretexto.
Eu restava horas sem fim, de coração aflito, seduzido pelas histórias de amor, pelo desafeto, de ingratidão, de mentiras do meu primeiro livro – as paredes da casa de meu avô. Assim, percebi o serviço das palavras – facas de dois gumes. Meu avô desdizia verdades eternas com as mesmas palavras com que escreveram a Bíblia Sagrada: “A bondade de Deus só não deu asa à cobra porque a cobra não cobrou; à noite todos os pardos são gatos; para quem sabe ler, um pingo nunca foi letra; em casa de ferreiro pobre, até o espeto é de pau porque não tem nem fogo”. Essa sua capacidade de negociar com as palavras, de buscar seus avessos, me atordoava e me seduzia.
Meu avô poderia ter sido meu primeiro professor se fizesse plano de aula, ficha de avaliação, tivesse licenciatura plena. O fato é que ele não aplicava prova, não passava dever de casa nem brincava de exercício de coordenação motora. Jamais me pediu que acompanhasse o caminho que o coelhinho fazia para comer a cenourinha nem me deu flor para colorir. Minha coordenação motora eu desenvolvi andando sobre muros ou pernas de pau, subindo em árvores, acertando as frutas com estilingue ou enfiando linha na agulha para minha avó chulear. Também, coelho não usava ainda nem na Páscoa, ocasião em que se comungava coordenando a hóstia para não esbarrar nos dentes nem grudar no céu da boca. Meu avô escancarava o mundo com letra bonita e me deixava livre para desvendar sua escritura.
Mesmo assim, cada dia eu conhecia mais palavras e mais distâncias, combinando melhor as orações. E suas paredes mais se enchiam de avisos sobre o mundo e as fronteiras do mundo. Eu decorava tudo e repetia timidamente. Eram tranquilas suas aulas, e o maior encanto estava em meu avô cultivar as dúvidas. Se ele escrevia “o mundo é uma bola besta sem eira nem beira”, eu desconfiava se estava dizendo ser a Terra redonda ou se a Terra era uma piada sem tamanho. Eu concluía ser as duas coisas. Às vezes ele me pegava esticando o pescoço, tentando alcançar um pedaço mais longo, um parágrafo mais alto. Ele me apontava a cadeira. Eu buscava e ele me ajudava a subir. Minha avó gritava: “Menino, desça daí, esse velho não é certo nem dá certeza”.
Meu avô voltava para a janela e continuava lendo o mundo, seu único e maior livro.
Bartolomeu Campos de Queirós, in Foram tantos, os professores

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