Os dois
irmãos subiam a serra e instalavam aos sábados uma banca de tecidos na feira. O
mais novo, estudante de direito em Recife, julgando-se com privilégio por ser
acadêmico, não descarregava as peças de pano nem ia para o balcão. Dormia na
hora da chegada, só acordando para o almoço.
A namorada
que arranjou naquela terra havia chegado há pouco de Brasília, onde morou com
os tios por algum tempo. Tomou-se de amores pelo estudante que recitava versos
de Augusto dos Anjos, e arrastava sem necessidade uma perna, representando o
soldado ferido na guerra que ele viu um dia no cinema. Mancando e recitando de
cor o poeta paraibano, compunha com sua cabeleira vasta uma imagem tocante,
capaz de descompassar os teares de um coração feminino.
Fora da
sala de estar do hotel de Lilia, onde os dois, a portas trancadas, começavam o
namoro logo em seguida ao almoço, o sol iluminava o branco das barracas de pano
que abrigavam comedouros improvisados, bares e jogos de toda espécie: roleta,
bacará, vinte e um, relancinho, bozó. No fim da tarde sempre havia uma briga.
Um filete de sangue tinha de correr no pôr do sol. As lutas aconteciam às vezes
por nada, a cachaça e uma banalidade qualquer faziam explodir a violência
represada.
Naquele
sábado, dois rapazes jogavam relancinho numa das barracas. Em pequenos copos de
vidro bebiam cinzano queimado, uma mistura de cinzano com conhaque de alcatrão.
Começaram animados, um de frente para o outro, sorrindo e apertando as mãos no
final de cada partida. Mas quando um deles bateu seguidamente pela décima vez e
arrastou da mesa, com as mãos grandes de macaco, um monte de fichas, trouxe de
volta velhos ressentimentos:
- Tanta
sorte assim só ladrão.
O
estudante namorava na sala de estar do hotel. Guardara a calcinha da namorada
na gaveta de um armário antigo, temendo que ela, nos alvoroços do prazer, se assustasse
e oferecesse de surpresa alguma resistência. No meio das carícias não se deram
conta do burburinho ali perto, no meio da feira, lá pelas cinco da tarde.
Os rapazes
saíram de dentro da barraca, um atrás do outro, caminharam até um pedaço de
chão limpo, de barro vermelho, em forma de círculo. Decidiram atar as camisas
de algodãozinho, e cada um, por sua vez, dava um nó, revezando-se até alcançar
o colarinho. Começaram a peleja com a primeira facada.
Lilia, na
cozinha, e por afeto à menina, se fazia de mouca aos ais e gemidos vindos da
sala. A tarde para os namorados era como passear nas estrelas, e o estudante
por um momento esqueceu Augusto dos Anjos e se lembrou de Bilac, que
considerava um sentimentalão.
À noite,
descendo a ladeira da serra de volta para casa, o irmão mais velho falou de uma
briga entre dois amigos que se travaram na faca, cada um com mais de trinta
furos no corpo, e de tanto sangrarem morreram da cor de vela. Quando saiu da
cidade, ele os deixou lá, amarrados no escuro, no chão de terra batida.
O irmão
mais novo estirou as pernas sobre o painel do carro, acendeu um cigarro e
procurou ficar longe daquela notícia de morte. Voltou na lembrança à sala de
estar do hotel de Lilia e viu quão belo é uma adolescente apaixonada, ainda sem
saber que nunca mais a veria. Por décadas os amores de sua vida tiveram essa
maldição, a de não passarem do começo.
Nos
solavancos da estrada viu o céu azul-ferrete, limpo e pepinado de estrelas,
como é o céu do sertão quando não chove. Deixou de lado o poeta do ¨Eu¨, de
muitas sombras, e desceu a serra conciliado com o lirismo de Bilac.
Demétrio
Diniz, escritor
norteriograndense de Alexandria, radicado em Natal. *Conto do livro
Sob o Sol de Natal, a ser lançado no dia 15 de março, às 19 horas, na livraria Siciliano do Midway, em Natal.
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