sábado, 18 de fevereiro de 2012

Em paz com Bilac*

Os dois irmãos subiam a serra e instalavam aos sábados uma banca de tecidos na feira. O mais novo, estudante de direito em Recife, julgando-se com privilégio por ser acadêmico, não descarregava as peças de pano nem ia para o balcão. Dormia na hora da chegada, só acordando para o almoço.
A namorada que arranjou naquela terra havia chegado há pouco de Brasília, onde morou com os tios por algum tempo. Tomou-se de amores pelo estudante que recitava versos de Augusto dos Anjos, e arrastava sem necessidade uma perna, representando o soldado ferido na guerra que ele viu um dia no cinema. Mancando e recitando de cor o poeta paraibano, compunha com sua cabeleira vasta uma imagem tocante, capaz de descompassar os teares de um coração feminino.
Fora da sala de estar do hotel de Lilia, onde os dois, a portas trancadas, começavam o namoro logo em seguida ao almoço, o sol iluminava o branco das barracas de pano que abrigavam comedouros improvisados, bares e jogos de toda espécie: roleta, bacará, vinte e um, relancinho, bozó. No fim da tarde sempre havia uma briga. Um filete de sangue tinha de correr no pôr do sol. As lutas aconteciam às vezes por nada, a cachaça e uma banalidade qualquer faziam explodir a violência represada.
Naquele sábado, dois rapazes jogavam relancinho numa das barracas. Em pequenos copos de vidro bebiam cinzano queimado, uma mistura de cinzano com conhaque de alcatrão. Começaram animados, um de frente para o outro, sorrindo e apertando as mãos no final de cada partida. Mas quando um deles bateu seguidamente pela décima vez e arrastou da mesa, com as mãos grandes de macaco, um monte de fichas, trouxe de volta velhos ressentimentos:
- Tanta sorte assim só ladrão.
O estudante namorava na sala de estar do hotel. Guardara a calcinha da namorada na gaveta de um armário antigo, temendo que ela, nos alvoroços do prazer, se assustasse e oferecesse de surpresa alguma resistência. No meio das carícias não se deram conta do burburinho ali perto, no meio da feira, lá pelas cinco da tarde.
Os rapazes saíram de dentro da barraca, um atrás do outro, caminharam até um pedaço de chão limpo, de barro vermelho, em forma de círculo. Decidiram atar as camisas de algodãozinho, e cada um, por sua vez, dava um nó, revezando-se até alcançar o colarinho. Começaram a peleja com a primeira facada.
Lilia, na cozinha, e por afeto à menina, se fazia de mouca aos ais e gemidos vindos da sala. A tarde para os namorados era como passear nas estrelas, e o estudante por um momento esqueceu Augusto dos Anjos e se lembrou de Bilac, que considerava um sentimentalão.
À noite, descendo a ladeira da serra de volta para casa, o irmão mais velho falou de uma briga entre dois amigos que se travaram na faca, cada um com mais de trinta furos no corpo, e de tanto sangrarem morreram da cor de vela. Quando saiu da cidade, ele os deixou lá, amarrados no escuro, no chão de terra batida.
O irmão mais novo estirou as pernas sobre o painel do carro, acendeu um cigarro e procurou ficar longe daquela notícia de morte. Voltou na lembrança à sala de estar do hotel de Lilia e viu quão belo é uma adolescente apaixonada, ainda sem saber que nunca mais a veria. Por décadas os amores de sua vida tiveram essa maldição, a de não passarem do começo.
Nos solavancos da estrada viu o céu azul-ferrete, limpo e pepinado de estrelas, como é o céu do sertão quando não chove. Deixou de lado o poeta do ¨Eu¨, de muitas sombras, e desceu a serra conciliado com o lirismo de Bilac.
Demétrio Diniz, escritor norteriograndense de Alexandria, radicado em Natal. *Conto do livro Sob o Sol de Natal, a ser lançado no dia 15 de março, às 19 horas, na livraria Siciliano do Midway, em Natal. 

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