sábado, 4 de janeiro de 2025

Um Marlboro Vermelho queimando na mão




[...]
E tinha o ônibus escolar. Naquela manhã, como em todas as manhãs, ninguém sentou ao meu lado. Encostei na janela e preenchi minha visão com o exterior, malva com a escuridão do início da manhã: o Motel 6, a lavanderia Kline’s, que ainda não tinha aberto, um Toyota bege sem capô abandonado em frente a um jardim com um balanço de pneu inclinado na terra. À medida que o ônibus acelerava, pedaços da cidade rodopiavam como objetos numa máquina de lavar. Em todo lugar à minha volta, meninos se empurravam. Eu sentia o vento dos braços e pernas deles se movendo rápido atrás da minha nuca, os braços e punhos agitados deslocando o ar. Conhecendo o rosto que tenho, seus traços raros para essa parte do mundo, forcei a cabeça ainda mais contra a janela para evitá-los. Foi aí que vi uma fagulha no meio de um estacionamento lá fora. Só quando ouvi as vozes atrás de mim percebi que a fagulha veio de dentro da minha cabeça. Que alguém enfiou minha cara no vidro.
Fala inglês”, disse o menino com um corte tigelinha nos cabelos amarelos, a papada corada e ondulante.
Os muros mais cruéis são feitos de vidro, Mãe. Eu queria quebrar o vidro e saltar pela janela.
Ei.” O garoto-papada se inclinou, a boca de vinagre do lado do meu rosto. “Você nunca diz nada? Você não fala inglês?” Ele agarrou meu ombro e me girou para ficar de frente para ele. “Olhe pra mim quando eu falo com você.”
Ele tinha só nove anos, mas já dominava o dialeto dos pais americanos perturbados. Os meninos se aglomeraram em torno de mim, sentindo que ia haver diversão. Eu sentia o cheiro das roupas recém-lavadas deles, os amaciantes de lilás e lavanda.
Eles esperaram para ver o que ia acontecer. Quando a única coisa que fiz foi fechar os olhos, o garoto me deu um tapa.
Diz alguma coisa.” Ele enfiou o nariz roliço na minha bochecha ardendo. “Você não consegue dizer pelo menos uma coisa?”
O segundo tapa veio de cima, de outro garoto.
Corte-tigelinha pegou meu queixo e girou minha cabeça na direção dele. “Diz meu nome, então.” Ele piscou, os cílios, longos e louros, quase nada palpitaram. “Que nem a tua mãe disse ontem de noite.”
Lá fora, as folhas caíam, gordas e úmidas como dinheiro sujo, pelas janelas. Eu me voluntariei a uma obediência severa e disse o nome dele.
Deixei o riso deles entrar em mim.
De novo”, ele disse.
Kyle.”
Mais alto.”
“Kyle.” Meus olhos ainda fechados.
Muito bem, putinha.”
Então, como uma virada no clima, começou a tocar uma música no rádio. “Ei, meu primo foi ao show deles!” E assim, do nada, acabou. As sombras deles saíram de cima de mim. Deixei meu nariz escorrer. Olhei para os meus pés, para os tênis que você comprou para mim, aqueles com luzes vermelhas que piscavam na sola quando eu andava.
Minha testa encostada no banco à minha frente, chutei meus tênis, gentilmente no começo, depois mais rápido. Meus tênis entraram em erupção com luzes silenciosas: as menores ambulâncias do mundo, indo a lugar nenhum.

Naquela noite você estava sentada no sofá com uma toalha enrolada no corpo depois do banho, um Marlboro Vermelho queimando na mão. Fiquei ali, segurando minhas pernas contra o peito.
Por quê?” Você olhava fixamente a TV.
Você enfiou o cigarro na xícara de chá e eu imediatamente me arrependi de ter contado. “Por que você ia deixar eles fazerem isso? Não feche os olhos. Você não está dormindo.”
Você pôs teus olhos em mim, fumaça azul rodopiando entre nós.
Que tipo de menino ia deixar fazerem isso?” A fumaça vazava pelos cantos da tua boca. “Você não fez nada.” Você deu de ombros. “Simplesmente deixou.”
Pensei na janela de novo, pensei que tudo parecia uma janela, mesmo o ar entre nós.
Você agarrou meus ombros, a testa pressionada forte contra a minha. “Pare de chorar. Você chora o tempo todo!” Você estava tão perto que eu sentia o cheiro de cinzas e pasta de dentes. “Ninguém está batendo em você ainda. Pare de chorar. Eu disse pra parar, cacete!”
O terceiro tapa daquele dia arremessou meu olhar para um lado, a tela da TV passou num flash diante dos meus olhos antes de minha cabeça girar de volta para encarar você. Teus olhos percorriam meu rosto de um lado para o outro.
E então você me puxou na tua direção, meu queixo apertado contra teu ombro.
Você tem que encontrar um jeito, Cachorrinho”, você disse em meio aos meus cabelos. “Você precisa encontrar, porque meu inglês não é bom o bastante pra te ajudar. Eu não tenho como dizer alguma coisa pra fazer eles pararem. Encontre um jeito. Encontre um jeito ou nunca mais me conte essas coisas, está ouvindo?” Você se afastou. “Você tem que ser um menino de verdade e ser forte. Você tem que mostrar que é forte ou eles vão continuar. Você já está de barriga cheia de inglês.” Você colocou a mão na minha barriga, quase sussurrando. “Você tem que usar isso, ok?”
Sim, Mãe.”
Você penteou meu cabelo de lado, me deu um beijo na testa. Você me estudou, um pouco a mais do que devia, antes de se jogar no sofá gesticulando. “Me pega outro cigarro.”
Quando voltei com o Marlboro e um isqueiro Zippo, a TV estava desligada. Você ficou ali sentada, só olhando a janela azul.
[...]

Ocean Vuong,em Sobre a terra somos belos por um instante

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