[...]
E
tinha o ônibus escolar. Naquela manhã, como em todas as manhãs,
ninguém sentou ao meu lado. Encostei na janela e preenchi minha
visão com o exterior, malva com a escuridão do início da manhã: o
Motel 6, a lavanderia Kline’s, que ainda não tinha aberto, um
Toyota bege sem capô abandonado em frente a um jardim com um balanço
de pneu inclinado na terra. À medida que o ônibus acelerava,
pedaços da cidade rodopiavam como objetos numa máquina de lavar. Em
todo lugar à minha volta, meninos se empurravam. Eu sentia o vento
dos braços e pernas deles se movendo rápido atrás da minha nuca,
os braços e punhos agitados deslocando o ar. Conhecendo o rosto que
tenho, seus traços raros para essa parte do mundo, forcei a cabeça
ainda mais contra a janela para evitá-los. Foi aí que vi uma
fagulha no meio de um estacionamento lá fora. Só quando ouvi as
vozes atrás de mim percebi que a fagulha veio de dentro da minha
cabeça. Que alguém enfiou minha cara no vidro.
“Fala
inglês”, disse o menino com um corte tigelinha nos cabelos
amarelos, a papada corada e ondulante.
Os
muros mais cruéis são feitos de vidro, Mãe. Eu queria quebrar o
vidro e saltar pela janela.
“Ei.”
O garoto-papada se inclinou, a boca de vinagre do lado do meu rosto.
“Você nunca diz nada? Você não fala inglês?” Ele agarrou meu
ombro e me girou para ficar de frente para ele. “Olhe pra mim
quando eu falo com você.”
Ele
tinha só nove anos, mas já dominava o dialeto dos pais americanos
perturbados. Os meninos se aglomeraram em torno de mim, sentindo que
ia haver diversão. Eu sentia o cheiro das roupas recém-lavadas
deles, os amaciantes de lilás e lavanda.
Eles
esperaram para ver o que ia acontecer. Quando a única coisa que fiz
foi fechar os olhos, o garoto me deu um tapa.
“Diz
alguma coisa.” Ele enfiou o nariz roliço na minha bochecha
ardendo. “Você não consegue dizer pelo menos uma coisa?”
O
segundo tapa veio de cima, de outro garoto.
Corte-tigelinha
pegou meu queixo e girou minha cabeça na direção dele. “Diz meu
nome, então.” Ele piscou, os cílios, longos e louros, quase nada
palpitaram. “Que nem a tua mãe disse ontem de noite.”
Lá
fora, as folhas caíam, gordas e úmidas como dinheiro sujo, pelas
janelas. Eu me voluntariei a uma obediência severa e disse o nome
dele.
Deixei
o riso deles entrar em mim.
“De
novo”, ele disse.
“Kyle.”
“Mais
alto.”
“Kyle.” Meus olhos ainda fechados.
“Muito
bem, putinha.”
Então,
como uma virada no clima, começou a tocar uma música no rádio.
“Ei, meu primo foi ao show deles!” E assim, do nada, acabou. As
sombras deles saíram de cima de mim. Deixei meu nariz escorrer.
Olhei para os meus pés, para os tênis que você comprou para mim,
aqueles com luzes vermelhas que piscavam na sola quando eu andava.
Minha
testa encostada no banco à minha frente, chutei meus tênis,
gentilmente no começo, depois mais rápido. Meus tênis entraram em
erupção com luzes silenciosas: as menores ambulâncias do mundo,
indo a lugar nenhum.
Naquela
noite você estava sentada no sofá com uma toalha enrolada no corpo
depois do banho, um Marlboro Vermelho queimando na mão. Fiquei ali,
segurando minhas pernas contra o peito.
“Por
quê?” Você olhava fixamente a TV.
Você
enfiou o cigarro na xícara de chá e eu imediatamente me arrependi
de ter contado. “Por que você ia deixar eles fazerem isso? Não
feche os olhos. Você não está dormindo.”
Você
pôs teus olhos em mim, fumaça azul rodopiando entre nós.
“Que
tipo de menino ia deixar fazerem isso?” A fumaça vazava pelos
cantos da tua boca. “Você não fez nada.” Você deu de ombros.
“Simplesmente deixou.”
Pensei
na janela de novo, pensei que tudo parecia uma janela, mesmo o ar
entre nós.
Você
agarrou meus ombros, a testa pressionada forte contra a minha. “Pare
de chorar. Você chora o tempo todo!” Você estava tão perto que
eu sentia o cheiro de cinzas e pasta de dentes. “Ninguém está
batendo em você ainda. Pare de chorar. Eu disse pra parar, cacete!”
O
terceiro tapa daquele dia arremessou meu olhar para um lado, a tela
da TV passou num flash diante dos meus olhos antes de minha cabeça
girar de volta para encarar você. Teus olhos percorriam meu rosto de
um lado para o outro.
E
então você me puxou na tua direção, meu queixo apertado contra
teu ombro.
“Você
tem que encontrar um jeito, Cachorrinho”, você disse em meio aos
meus cabelos. “Você precisa encontrar, porque meu inglês não é
bom o bastante pra te ajudar. Eu não tenho como dizer alguma coisa
pra fazer eles pararem. Encontre um jeito. Encontre um jeito ou nunca
mais me conte essas coisas, está ouvindo?” Você se afastou. “Você
tem que ser um menino de verdade e ser forte. Você tem que mostrar
que é forte ou eles vão continuar. Você já está de barriga cheia
de inglês.” Você colocou a mão na minha barriga, quase
sussurrando. “Você tem que usar isso, ok?”
“Sim,
Mãe.”
Você
penteou meu cabelo de lado, me deu um beijo na testa. Você me
estudou, um pouco a mais do que devia, antes de se jogar no sofá
gesticulando. “Me pega outro cigarro.”
Quando
voltei com o Marlboro e um isqueiro Zippo, a TV estava desligada.
Você ficou ali sentada, só olhando a janela azul.
[...]
Ocean Vuong,em Sobre a terra somos belos por um instante
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