segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

O Caçula

De volta da repartição, José pendura o chapéu no cabide, atira na mesa da sala a correspondência que retirou da caixa postal. Assim que ele entra no quarto, o velho Francisco, que estava à espreita, vem apanhar o jornal e a carta.
A mãe bate na porta e traz o prato na bandeja. Assiste ao almoço de José, sentado na cama, e põe um pouco de ordem no quarto. Antes de se afastar, a mão de leve na cabeça quase calva:
Meu filho, por que não conversa com seu pai?
Poxa, mãe... Nunca vai aprender?
Dez anos que não fala com o pai e faz as refeições no quarto. Até hoje os filhos, quase todos casados, não fumam na presença do velho; ai de quem esquecia de tomar a bênção pela manhã e antes de dormir! O caçula José, mimado pela mãe, único a desafiar sua prepotência.
Esse rapaz, Cecília, tem jeito não.
Estou velho demais, mãe, para pedir louvado.
Os filhos casaram e desertaram a família, ficou somente José. O pai, que persegue a coitada de dona Cecília, verifica antes se ele não está por perto. Envelhecem, ambos intransigentes no seu rancor, o ancião lépido aos setenta anos e José, bigode grisalho, na flor dos quarenta. Herda a roupa sovada dos irmãos e dona Cecília, escondida do marido, dá-lhe pequena mesada para cinema e cigarro.
José circulou algum tempo de pasta, com prospecto de seguro e amostra de chocolate. Não vendeu apólice alguma, suficiente a importância da pasta preta. As amostras ele mesmo comeu. Chegava em casa, o paletó nas costas, exausto. Afinal ocupava-se em recado e servicinho para a mãe.
Se lhe entregam um cheque para descontar, imediatamente aflito. Do jornal vê a página esportiva, perplexo que a Rússia é comunista. Rapaz bem mandado, embora incapaz de ganhar a vida. Romântico, duas vezes foi noivo. A primeira de uma Fagundes, gorducha e ruiva. O velho Francisco levantou o braço para o céu:
Onde é que esse rapaz tem a cabeça?
José desfez o compromisso — como sustentar a família se nada quer com o trabalho? — e não mais se falaram. A moça casou com outro, asinha se apartou. José em voz alta que o pai ouvisse lá da sala:
Aqui do bichão ela não esquece!
Noivado seguinte com a prima de terceiro grau, ao jeito de dona Cecília, que fez gosto no casamento. José não marcava a data e, cinco anos depois, a pobre se finou do peito. Uma tarde surgiu a tia na casa, reclamou as cartas da filha. José em dúvida se as teria ou não devolvido. Acompanhado das duas senhoras, vasculharam o quarto. Dona Cecília se desculpava das migalhas na cama. As cartas de amor perdidas no fundo de um baú…
Às festinhas de família comparece o irmão Agenor, preferido do pai. José volta bêbado de madrugada. A mãe traz-lhe a comida, ele se queixa, coçando a barba:
O menino de ouro vem aí. Dão o carro para ele. O menino querido sai de carro. E o bichão aqui não tem nada. Depois sou eu que vivo à custa do Chiquinho.
Respeite o seu pai, meu filho.
Quem, o Chiquinho? Que se dê o respeito para as negras dele.
O pai espairece no jardim, braço dado com Agenor.
Olhe a calça caída do Chiquinho. O velho vai mal, hein, mãe? Já de pescoço fino.
Bebe durante a semana. No domingo, em cueca, peito cabeludo, folheia revista antiga e beberica leite com mel. A mãe censura a falta dos dentes.
Todos não, mãe. Veja, firme o canino. O Chiquinho quer a bênção, não é?
Deus te ouça, meu filho.
O canino de lhe morder a mão!
Não sossega a velha enquanto ele não chega. Muita madrugada envolve o xale na cabeça, vai brigar com o botequineiro:
O senhor é que desgraça meu filho. Não o deixa ir para casa. Aí nessa vida de perdição.
Defende-o das insinuações da família:
Nada como um moço em casa. Se entra um ladrão... O que pode um velhinho?
E olha dos lados, o grande Francisco não escute, ainda se considera mais homem que o filho.
Moço é diferente. Ele enfrenta o ladrão!
Famoso no tango com passinho floreado na pensão de mulheres, lenço de seda ao pescoço, chapéu de banda esconde a calvície:
Fiquei careca do elixir 914…
O velhinho aos beijos com uma negra! Há dez anos expulso do quarto sagrado!
...que deram ao Chiquinho.
Em desafio ao velho exibe-se ao sábado, no cinema, de braço não com uma, senão duas e três mulatas pintadas de ouro — por todas é amado de graça. E cada dia mais parecido com o pai, o mesmo andar de mãos cruzadas nas costas, o jeito de alisar o cabelo atrás da orelha.

Dalton Trevisan, em Cemitério de elefantes

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