Não
faz muito tempo, uma editora me incumbiu de escrever a introdução
para a reimpressão de um romance de Leonard Merrick. Essa editora,
ao que parece, vai relançar uma série de romances menores e até
certo ponto esquecidos do século xx. Trata-se de um serviço valioso
nestes tempos carentes de livros, e invejo muito a pessoa cujo
trabalho será vasculhar as caixas de livros, baratos, à caça de
seus exemplares preferidos da meninice.
Um
tipo de livro que dificilmente produzimos nos dias de hoje, mas que
floresceu com enorme riqueza no fim do século XIX e início do
século XX, é o que Chesterton chamou de “bom livro ruim”: ou
seja, o tipo de livro sem pretensões literárias, mas que continua
legível depois de obras mais sérias terem perecido. Com certeza,
livros notáveis nessa linha são Raffles [nome do ladrão
“cavalheiro”, personagem de uma série de romances de Ernest
William Hornung] e as histórias de Sherlock Holmes, cujos lugares
foram preservados, enquanto inúmeros “romances desajustados”,
“documentos humanos” e “denúncias terríveis” disso e
daquilo caíram no merecido esquecimento. (Quem envelheceu melhor:
Conan Doyle ou George Meredith?) Quase na mesma classificação
coloco os primeiros contos de Richard Austin Freeman — “The
singing bone” [O osso canoro] e “The eye of Osiris” [O olho de
Osíris], entre outros —, Max Carrados, de Ernest Bramah, e,
baixando um pouco o nível, o thriller tibetano de Guy
Boothby, Dr. Nikola, uma espécie de versão escolar de
Travels in Tartary [Viagens na Tartária], de
Evariste-Regis Huc, que provavelmente faria de uma visita real à
Ásia Central um anticlímax desolador.
Mas,
afora thrillers, havia os escritores bem-humorados menores do
período. Por exemplo, Pett Ridge — embora eu reconheça que seus
livros já não pareçam de todo legíveis —, Edith Nesbit (The
treasure seekers [Os caçadores de tesouro]), George
Birmingham, que foi bom enquanto permaneceu longe da política, o
pornográfico Arthur Binstead (o “Pitcher” de Pink ’Un and
the pelican [O rosado e o pelicano]) e, se livros
americanos podem ser incluídos, as histórias do menino Penrod, de
Newton Booth Tarkington. Superior a esses era Barry Pain. Creio que
ainda se encontram alguns dos escritos bem-humorados de Pain, mas,
para quem topar com ele, recomendo um livro que hoje deve ser
raríssimo: The octave of Claudius [A oitava de Cláudio],
um brilhante exercício do macabro. De uma época um pouco posterior,
houve Peter Blundell, que escreveu na veia de William Wymark Jacobs
sobre cidades portuárias do Extremo Oriente e que de forma
inexplicável parece bastante esquecido, apesar de ter recebido um
elogio de H. G. Wells em texto publicado.
No
entanto, todos os livros a que me referi são abertamente literatura
de “escapismo”. Constituem agradáveis refúgios em nossa
memória, cantos sossegados por onde a mente pode vagar curiosa de
vez em quando, mas que quase não pretendem ter algo a ver com a vida
real. Existe outro tipo de bom livro ruim com intenções mais sérias
que acho que nos fala alguma coisa sobre a natureza do romance e os
motivos de sua decadência atual. Durante os últimos cinquenta anos,
houve uma série de escritores — alguns deles continuam a escrever
— que é totalmente impossível chamar de “bons” de acordo com
qualquer padrão literário, mas que são romancistas genuínos e
parecem alcançar sinceridade em parte por não se deixarem inibir
pelo bom gosto. Nessa categoria coloco o próprio Leonard Merrick, W.
L. George, John Davys Beresford, Ernest Raymond, May Sinclair e —
num nível um pouco mais baixo, mas ainda essencialmente semelhante —
Arthur Stuart-Menteith Hutchinson.
Muitos
deles foram escritores prolíficos, com uma produção de qualidade
certamente variada. Em cada caso, penso em um ou dois livros
excepcionais: por exemplo, Cynthia, de Merrick; A candidate
for truth [Um candidato à verdade], de John Davys
Beresford; Caliban, de W. L. George; The combined maze
[O labirinto combinado], de May Sinclair; e We, the accused
[Nós, os acusados], de Ernest Raymond. Em cada um desses, o
autor foi capaz de se identificar com os personagens que imaginou,
sentir com eles e solicitar compreensão em nome deles, com uma
espécie de abandono que pessoas mais hábeis teriam dificuldade de
alcançar. Eles ressaltam o fato de que o refinamento intelectual
pode ser uma desvantagem para um romancista, assim como seria para um
comediante do teatro de variedades.
Tomemos,
por exemplo, We, the accused, de Ernest Raymond — uma
história de homicídio estranhamente sórdida e convincente, baseada
talvez no caso Crippen [médico londrino que em 1910 matou a mulher,
Cora Crippen]. Acho que se beneficia bastante do fato de que o autor
capta apenas em parte a patética vulgaridade das pessoas sobre quem
escreve e por isso não as despreza. Talvez até — como An
american tragedy [Uma tragédia americana], de Theodore Dreiser —
se beneficie um pouco da forma canhestra e prolixa como é escrito;
detalhes se acumulam sobre detalhes, quase nem há uma só tentativa
de seleção, e com isso se constrói pouco a pouco um efeito de
crueldade terrível e excruciante. O mesmo ocorre em A candidate
for truth. Nesse caso não há mesmo caráter canhestro, mas há
a mesma capacidade de encarar com seriedade os problemas das pessoas
comuns. O mesmo ocorre em Cynthia e na primeira parte de
Caliban. Grande parte do que W. L. George escreveu eram
tolices da pior qualidade, mas neste livro específico, baseado na
carreira do britânico Alfred Northcliffe, conseguiu fazer algumas
descrições memoráveis e verdadeiras da vida da classe média baixa
de Londres. Partes do livro são provavelmente autobiográficas, e
uma das vantagens dos bons escritores ruins é não terem vergonha de
escrever autobiografia. O exibicionismo e a autocomiseração são as
perdições do romancista, mas se ele tiver muito medo disso o
talento criativo pode sofrer.
A
existência da boa literatura ruim — o fato de podermos nos
entreter, ficar irrequietos ou mesmo emocionados com um livro que
nosso intelecto simplesmente se recusa a levar a sério — é um
lembrete de que arte não é a mesma coisa que cerebração. Imagino
que, por qualquer critério que se possa conceber, Carlyle seria
considerado mais inteligente do que Trollope. No entanto Trollope
continua legível, e Carlyle não: apesar de toda a sua
engenhosidade, não teve sequer a perspicácia de escrever num inglês
direto e de fácil compreensão. Nos romancistas, quase tanto quanto
nos poetas, é difícil identificar a ligação entre inteligência e
força criativa. Um bom romancista pode ser um prodígio de
autodisciplina como Flaubert ou um intelectual disperso como Dickens.
Talento suficiente para originar dezenas de escritores comuns foi
despejado nos pretensos romances de Wyndham Lewis, por exemplo Tarr
ou Snooty baronet [O baronete arrogante]. No
entanto, exigiria um esforço enorme ler um desses livros do começo
ao fim. Falta-lhes uma qualidade indefinível, uma espécie de
vitamina literária que existe até num livro como If winter comes
[Se o inverno chegar, de Hutchinson].
Talvez
o exemplo máximo do bom livro ruim seja A cabana do pai Tomás
[de Harriet Beecher Stowe]. É um livro risível sem essa intenção,
cheio de incidentes melodramáticos absurdos; é também
profundamente emocionante e essencialmente verdadeiro; difícil dizer
qual qualidade pesa mais do que a outra. Mas A cabana do pai Tomás
tenta, afinal, ser sério e tratar do mundo real. Que tal os
escritores francamente escapistas, os fornecedores de sensações
fortes e humor “leve”? Que tal Sherlock Holmes, Vice-versa
[de F. Anstey], Drácula [de Bram Stoker], Helen’s babies
[de John Habberton] ou As minas do rei Salomão [de Henry
Rider Haggard]? São todos livros absurdos, é indiscutível, livros
que nos predispõem a caçoar deles, e não a nos entreter com eles,
e que mal foram levados a sério mesmo pelos autores; mas
sobreviveram e talvez continuem a sobreviver. Tudo o que podemos
dizer é que, enquanto a civilização permanecer de tal forma que
precisemos de distração de vez em quando, a literatura “leve”
tem lugar reservado; e também podemos dizer que existe a pura
habilidade, ou graça inata, que pode ter mais valor de sobrevivência
do que a erudição ou o poder intelectual. Existem canções do
teatro de variedades que são poemas melhores do que a quase
totalidade do conteúdo que integra as antologias:
Vem
pra onde beber custa quase nada,
Vem
pra onde a caneca é quase uma tina,
Vem
pra onde o patrão é mais camarada,
Vem
pro bar que fica logo ali na esquina!1
Ou
também:
Dois
olhos bem roxinhos —
Oh,
mas que maçada!
Só
por falar com a pessoa errada,
Dois
olhos bem roxinhos!2
Eu
preferiria ter escrito um desses versos a, digamos, “The blessed
damozel” [A donzela abençoada, de Dante Gabriel Rossetti] ou “Love
in the valley” [Amor no vale, de George Meredith]. E como prova do
que digo, aposto que A cabana do pai Tomás sobreviverá às obras
completas de Virginia Woolf ou de George Moore, embora não conheça
critério estritamente literário que mostre onde reside a
superioridade.
Tribune,
novembro de 1945.
1
Come where the booze is cheaper,/ Come where the pots hold more,/
Come where the boss is a bit of a sport,/ Come to the pub next door!
(N. T.)
2
Two lovely black eyes —/ Oh, what a surprise!/ Only for calling
another man wrong,/ Two lovely black eyes! (N. T.)
George Orwell, em Dentro da baleia e outros ensaios
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