domingo, 18 de agosto de 2024

Na pontinha da orelha


Nelsinho abriu o portão, equilibrou-se nos tijolos soltos e, diante da porta, conchegado no saco de estopa, onde limpava os pés, deu com o Paxá. Tarde o cachorro descobriu que era ele, havia rolado os três degraus com o pontapé. Velho e doente, nem rosnou, apenas gemeu de dor; trêmulo, arrastando a perna, perdeu-se no fundo do quintal. O rapaz bateu na porta e, sem esperar, entrou na cozinha deserta. Ouviu as vozes do rádio e, pontinha de pé, dirigiu-se para a sala.
Do corredor espiou a velha na cadeira de balanço, tigela erguida ao peito, a engolir com avidez o caldo de feijão. Imóvel à porta, ele não a tinha enganado: a velha sorvia ruidosamente a sopa, sem deixar de seguir a novela. Nada que denunciasse a atenção – nem piscar de pálpebra, nem arfar de narina, escancarada a boca quando a colher ainda na tigela –, sabia de sua presença desde que saltara do ônibus na esquina. Sob a ladainha dos atores percebia o chio do sapato na areia, o leve toque na porta. Jamais lhe deu as costas – não seria ela, velha matadora, quem se descuidasse do touro. O herói espreitava o dia em que a surpreendesse no sótão, à beira da escada...
Boa noite, dona Gabriela. Já veio a Neusa?
Trocando de roupa. – E segundo a regra do jogo: – Que susto, meu filho, me pregou! – e a colher raspava o fundo da tigela. – O Paxá, coitado, não tem força de latir.
Aviso de que não subestimasse as velhas matadoras: sabia do pontapé no guapeca do coração. Depositou a tigela na mesa do lado. Mão trêmula, alcançou o copo.
Tomando sua cervejinha, dona Gabriela? Expressão obscena de gozo, bebia de olho fechado.
Ganhei do Noca.
A primeira?
É, sim.
Acabou a garrafinha de rum?
Bigode de espuma na boca encarquilhada.
Fale baixo, a Neusa escuta.
Exibiu entre as raízes podres o último canino amarelo.
Um restinho só.
Que tal mais uma?
Minha perdição é você, meu filho. Emprestada, hein? Faço questão de pagar.
O Zezinho não aliviou a carteira?
Nem queira saber.
Suspiro nas entranhas da velha, que emborcou o copo. Apressou-se o rapaz em servi-la.
Bem que escondi – e deu um arrotinho. – Essa tosse. Quero ver se descobre.
Tem muito dinheiro, não é?
A velha girou o rosto – não desvie o olho, conde Nelsinho, que está perdido.
Ai de mim. Tivesse dinheiro, estava gemendo e sofrendo nesta cadeira? Pensa que tenho, é?
No buço da velha secavam as bolhas de espuma.
Quer outra garrafa?
O dedinho inchado de nós catou fiapos da saia.
Conte para ninguém, meu filho. Senão eles escondem. Não me dão um gole.
Fique descansada. É segredinho.
Cuidado, a Neusa.
Ele virou-se, não disfarçou a careta de desgosto.
Que foi, meu bem?
Esse vestido.
Até que engraçadinho, xadrez azul e preto.
Que é que tem?
Sabe que tenho pavor.
A virgem há que fazê-la rastejar. Lavar meu pé, enxugá-lo no cabelo perfumado.
Quer que mude?
Alguma vez iria enfrentá-lo, não hoje:
Bobinha de mim.
Neusa ergueu-se para beijá-lo. Ele voltou o rosto e, franzindo a sobrancelha, designou ali a múmia, pescoço torto a fim de aproveitar a última gota. A garrafa vazia deixou a velha amarga. Mal o percebeu instalado na cadeira:
Ai, meu filho. O que é a doença. Deus te livre sofrer como eu. Velho pode morrer, ninguém liga.
Cruz na boca, ó diaba agourenta.
Disse bem, dona Gabriela. Cadê o pessoal?
Lígia no cinema com o Artur.
E o Zezinho?
Acha que podiam ir só os dois? Afogá-la no barril de rum – ela e o chantagista do Zezinho.
Não tem medo de ficar sozinha?
Ela reclinou-se na cadeira, à mostra o tornozelo inchado – um labirinto de grossas varizes roxas.
O velho sempre só. Nem queira saber o que é viver assim. A ninguém desejo o que sofro. Eu que sei. Isso não é vida. Deus me perdoe. Deus não existe. Se existisse, me deixava tanto sofrer?
Faraó sentado no sarcófago, crispava no joelho pontudo a mão transparente. Ali grudadas duas, três moscas.
Justo cada um pague os seus pecados. Não eu, que nunca desejei mal. Me matei de bater roupa no tanque. Gastei os dedos de esfregar a chapa do fogão. Perdi os olhos de costurar à noite. Se alguém devia sofrer não eu – era o Carlito. Devia ter acontecido para o Carlito.
Ele não morreu?
Levou uma vida feliz. E não sofreu para morrer. Os dias bebendo com as vagabundas. Me arrebentei de trabalhar, condenada a esta cadeira. Ele se regalou e morreu na força do homem.
Morreu de quê?
Tumor na cabeça. Sem ninguém. Pedindo o meu perdão. Que o fosse ver na hora da morte. Rezei no velório, isso sim. Perdoar é que não.
Mão no bolso, Nelsinho batia-se pela saleta, encurralado. Fingindo admirar a Santa Ceia, careta medonha para o papagaio pesteado. Apontou-lhe espingarda imaginária na nuca. Se bem não espantasse as moscas, ela coçou o alvo no pescoço. – Me ouvindo, meu filho? Não queira ficar igual a mim. Fui moça feito você.
Lá estava a praguejá-lo, rainha louca. Bem feito, castigo do céu.
Sempre a falar, dirigiu-se à escada, abriu a porta da despensa. Um passo na escuridão, dobrou a cabeça e, sem acender a luz, afastou as latas de açúcar, feijão, arroz, desentranhou outra garrafa.
Reze por mim, meu filho. Não sei o que é dormir. Sentada na cama, à escuta... A bulha do morcego. Um grilo preto no canteiro de couve. Lá no degrau os dentes do Paxá estalando. Se não é a cervejinha...
Não se trata com médico?
Única esperança é um milagre.
Fez-se o milagre: Neusa assomou à porta. Num salto o rapaz agarrou-lhe a mão. Atravessando o corredor, arrastou-a para a sala vizinha; primeiro exibiu a língua para a velha, entretida em derramar a bebida sem fazer espuma.
Tirou o paletó, estendeu-se com gemido no sofá. Neusa fechou a janela – Zezinho, oito anos, era o olho da diaba. Ao erguer o braço, a blusa branca revelou nesga de carne: sei que não devo, muito magro, uma tosse feia – se não me cuido, nasce cabelo na palma da mão. A bela sentou-se na ponta do sofá, ele cruzou os pés na mesinha.
Por favor, Neusa. Nunca me deixe só com ela. Para aguentar tua avó precisa ser santo. Por que não serve vidro moído na sopa?
Fale baixo. Ela escuta.
O rádio ligado.
Ela entende através da parede.
Bem desconfiei. Ouviu o pontapé no Paxá.
É bruxa.
Mudá-la para o sótão. Acaba rolando da escada.
Não diga bobagem, querido. Chega dessa velha horrorosa.
Que você fez?
Abriu os braços no espaldar. Neusa apoiou a cabeça no seu ombro.
Trabalhei.
Faz tempo que chegou?
Pouco antes de você.
Teu patrão paga extraordinário?
Nem um tostão.
Não quis se fazer de engraçadinho?
Seja bobo, querido. É casado.
E daí?
Tenho noivo particular.
Como é que ele sabe?
Você nunca foi me esperar?
Que foi que falou?
Achou você muito simpático. Até pergunta quando são os doces.
Ah, os doces, e? Esses doces, quem vai comer é o Paxá. Ela aninhou-se no peito e, erguendo a cabeça, beijou-o na pontinha da orelha.
Tenho de esperar muito, querido? Não posso com essa diaba.
Faça isso não. Todo arrepiado.
A moça prendeu-lhe a cabeça nas mãos, deu um beijo frenético: a língua se oferecia no lábio entreaberto.
Não para de chupar bala de hortelã.
Quer que jogue?
Mania essa!
A oportunidade de me salvar: fazer uma cena e adeus, beleza!
Não fique bravo, meu bem.
Com os olhos procurou um lugar: o vaso de violetas? A janela, fechada. Fitou-o chorosa.
Que eu engula?
Se gosta de mim, engole.
Deglutiu a bala inteirinha. Doeu, uma lágrima saltou de cada olho. Esta não me escapa – é minha.
Falei brincando.
Tudo que você quiser.
Tudo, Neusa? Tudo mesmo? Ofereceu-lhe, sim, a boca inchada de beijos.
Crisparam-se as mãos do rapaz no espaldar – sei que não devo, é loucura. A velha na saleta, assim não adianta xarope de agrião. De leve afagou o braço lisinho. Sabe o delírio de uma carne em flor? A mão escorregou – sou fraco, Senhor, não mereço – até empalmar a pêra descascada do seio. O que é prender um pintassilgo no alçapão? O herói apertou a pálpebra: o biquinho do pintassilgo beliscava a mão do dono.
Esmagada pelo abraço, a moça libertou uma das mãos e introduziu-a sob a camisa – cinco patinhas úmidas de mosca a arrepiá-lo da nuca à ponta do pé. Derretido de gozo, comprimiu segunda vez a pálpebra – uma cóceguinha no céu da boca, prestes a uivar.
Estalavam as molas do sofá. Ó Deus, se a velhota, de repente? Sentou-se penosamente, suportando o peso da moça. Ofegante, respirou de boca aberta, dedo tremente abriu a blusa. Afastou-a do sofá para desprender a blusa, espirrou o sutiã no colo da moça. Sempre nova a descoberta do pequeno seio, metade exata de limão – e precipitou-se para beijá-lo. Diante do peito alvacento de pombinha as dores do mundo perdiam o sentido.
Mal o tempo de esconjurar a velha – afogado que afunda terceira vez a cabeça – e rolou, e rolaram os dois pelo sofá, pequeno demais para os acolher. Não podiam deitar-se, suspendeu-a pela cintura, ficaram de pé.
Largou-a um instante, com repelão desfez-se da camisa. Beijou a bela que desfalecia, filhotes famintos roubando alimento um da boca do outro. Mão frenética nas prendas deliciosas, encontrou a lasca da saia, libertou o único botão. Aos poucos a saia preta devassava a calcinha rósea. Um passo atrás, a saia deslizou ao pé da moça: Neusa ai, Neusa! Cheia de aflição, gemeu baixinho – Por lavar, por favor! Desesperado – tomara a velha pense que é o Paxá –, ergueu-a com as duas mãos, que ficasse do seu tamanho. Ela entendeu, alçou-se na ponta do pé, um coube direitinho no outro.
O herói pairou a nove centímetros do chão. Ao tatalar da asa da loucura: Qual é teu nome? Responda depressa: Quem é você? Depressa – e antes que pudesse, dona Gabriela entrou na sala.
Separaram-se, cambaleando cada um de seu lado. O coração de Nelsinho disparou a mil por minuto. Uma veia, de que nunca suspeitara, latejava na testa a ponto de rebentar: Me acuda, mãe do céu.
Que é... a senhora quer, vovó?
Da garganta de Neusa – não era a sua voz. A velha recolheu o braço estendido, balançou a cabeça em silêncio, olho bem aberto. Na teia escura de rugas lampejo azul de desconfiança.
Por que tão quietos?
O herói estupefato diante da velha que os enfrentava sem piscar.
Por que está de pé, menina?
Eu... trocando a lâmpada.
O foco queimou?
Agora mesmo.
Vocês se comportaram? O Nelsinho é de confiança. O que esperando, minha filha? Pegue um foco na despensa.
Neusa pisou o monte de roupa. Ao alcance da megera, junto da porta. Agora estende a mão, agarra a menina – tenho de fazer uma carnificina. Quase um grito, para que o olhasse:
Quer que eu – a voz partiu-se, continuou sem fôlego – outra cervejinha?
Muito gentil, meu filho. Daqui a pouco... Se soubesse. Tão só, lá na sala. Uma dor fininha no coração. Pensei que era o fim.
A moça tornou de mansinho, o seio na mão:
Aqui o foco, vovó.
Descalçou o sapato, subiu na cadeira:
Pronto.
Sentou-se ao lado do rapaz, que enxugava o suor frio da testa. Sempre a vigiar a velha, quase sem vê-la, óculo embaçado. Com um suspiro, a anciã afundou-se na poltrona, repuxou o xale negro polvilhado de caspa.
Ah, minha filha, você soubesse... Contava para o Nelsinho – e o pé sacudido por tremores, um pangaré que espantasse as varejeiras. – Pagando o pecado de outro.
Ah, meus filhos, o que é sofrer como eu – e deu um arroto.
A bruxa de pilequinho.
Mais uma garrafa, dona Gabriela? Mil garrafas não a fariam calar a boca.
Gosto de você, Nelsinho. Como de um filho. Deus o livre e guarde da minha doença. Reze por mim.
Derrotado, baixou a cabeça, prendeu três botões da camisa,
Não queira ficar como eu. Só eu sei. Isso não é vida.
Observando a avó cega e concordando com ela – Sim, vovó. Pois é, vovó. É sim, vovó – Neusa desabotoou um, dois, três botões e voltou a beijá-lo na pontinha da orelha.

Dalton Trevisan, em O Vampiro de Curitiba

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