segunda-feira, 12 de agosto de 2024

Lembrança de um verão difícil

A insônia levitava a cidade mal iluminada. Não havia porta fechada e toda janela tinha sua quente luz. Em torno dos lampiões as larvas voavam. À margem do rio as mesas, as poucas conversas cansadas, crianças adormecidas no colo. A desperta leveza da noite não nos deixava ir dormir; como andarilhos, devagar andávamos. Fazíamos parte do velório amarelado dos lampiões, e das larvas aladas, e de redondas alturas suspensas, e da vigília de toda uma abóbada celeste. Fazíamos parte da grande espera que, por si mesma e em si mesma, é o que o universo inteiro faz. Desde as outras enormes larvas que haviam outrora bebido lentamente da água daquele rio.
Mas dentro da grande espera total, que era o modo de se estar sendo, eu pedia trégua. Aquela noite de verão em agosto era do mais fino tecido, para sempre inquebrável, de se estar esperando. Eu queria que a noite começasse enfim a tremer em fino espasmo, principiando a sua agonia; para que também eu pudesse dormir. Mas eu sabia que a noite de estio não se esgarça nem amanhece, ela apenas se sudoriza na morna febre da madrugada. E sempre sou eu quem tem ido dormir, sempre sou eu quem tem entrado em agonia, enquanto ela permanece como um olho sem pálpebra. É sob o grande olho acordado do mundo que tenho arrumado o meu sono, enrolando em mil panos de múmia o meu grão de insônia, que é o diamante que me coube. Eu estava na esquina e sabia que nada jamais entrará em agonia. É um mundo eterno. E eu sabia que sou eu que tenho de morrer.
Mas não queria sozinha, queria um lugar que se parecesse com o que eu precisava, queria que recebessem minha agonia necessária. Minhas mortes não são por tristeza – são um dos modos do mundo inspirar e expirar, a sucessão de vidas é a respiração da espera infinita, e eu mesma, que também sou o mundo, preciso do ritmo de minhas agonias. Mas se eu, como mundo, concordo com a minha morte, eu, como a outra coisa que extremamente também sou, preciso que as mãos da misericórdia recebam o corpo morto. Eu, que também sou a esperança da redenção da espera, preciso que a piedade do amor me salve e ao espírito de meu sangue. O sangue que está tão negro na poeira negra de minhas sandálias, e minha testa estava rodeada de mosquitos como uma fruta. Onde poderia eu me refugiar e livrar-me da vibrante noite de verão que me acorrentara à sua grandeza? Meu pequeno diamante se tornara tão maior que eu, e eu via que também as estrelas são duras e brilhantes, e eu precisava ser o fruto que apodrece e rola. Eu precisava do abismo.
Vi então, toda de pé, a Catedral de Berna.
Mas também a catedral estava quente e alerta. Cheia de vespas.

Clarice Lispector, em Todas as crônicas

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