segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Francisca


Não há mulher que não sonhe em matar o marido. Eu também tinha esse devaneio, mas ele se tornou uma determinação realista.
Tomávamos o café da manhã no dia em que propus a nossa separação. Ele disse, tudo bem, você não vai levar um tostão, vai comer o pão que o diabo amassou, eu não tenho bens, este apartamento é alugado, o dinheiro está todo numa conta secreta num paraíso fiscal. Você sabe o que é paraíso fiscal? Claro que não sabe, você não sabe merda nenhuma, é uma idiota.
Respondi que ia à polícia contar tudo, e ele teve um ataque de riso e respondeu, você é mesmo uma imbecil.
Fiquei olhando ele comer os seus ovos com bacon, todo marido canalha come ovos com bacon. Depois que ele limpou a boca com o guardanapo, pedi humildemente dinheiro para ir ao salão pintar o cabelo, fios brancos estavam aparecendo em toda parte na minha cabeça. Ele respondeu, hoje não dou nem um tostão, para você aprender a não me fazer ameaças.
A gente se vinga de um marido desses não é tirando dinheiro da sua carteira nem inventando falsas despesas de mercado nem arranjando um amante como todas fazem. Só há uma retaliação a fazer nessa situação. Um marido desses tem que ser morto. Não em sonho. Na vida real.
Fui para o espelho examinar as raízes do cabelo, todas elas estavam ficando grisalhas, eu estava virando uma velha.
À noite ele me deu um papel e disse, a fim de ajudar você a fazer a sua denúncia para a Receita Federal, e não para a polícia, sua palerma, quero lhe dar uma relação quase completa dos paraísos fiscais existentes. Fiz a lista em ordem alfabética, ele disse, com um sorriso cínico, dando-me um papel cheio de nomes.
Antilhas Holandesas, Aruba, Bahamas, Bahrein, Barbados, Belize, Bermudas, Campione d’Italia, Ilhas do Canal (Alderney, Guernsey, Jersey, Sark), Ilhas Cayman, Chipre, Cingapura, Ilhas Cook, República da Costa Rica, Djibuti, Dominica, Emirados Árabes, Gibraltar, Granada, Hong Kong, Lebuan, Líbano, Libéria, Liechtenstein, Luxemburgo, Macau, Ilha da Madeira, Maldivas, Malta, Ilha de Man, Ilhas Marshall, Ilhas Maurício, Mônaco, Ilhas Montserrat, Nauru, Ilhas Niue, Sultanato de Omã, Panamá, Samoa Americana, Samoa Ocidental, San Marino, Santa Lúcia, Federação de São Cristóvão e Nevis, São Vicente e Granadinas, Seychelles, Tonga, Ilhas Turks e Caicos, Vanuatu, Ilhas Virgens Americanas, Ilhas Virgens Britânicas.
Meu Deus, nomes de que nunca ouvi falar, como saber em que paraíso o meu marido tinha o dinheiro escondido? E como se mata um marido? Veneno? tiro? facada? Faca eu posso arranjar, mas acabo causando apenas um arranhão na pele desse cachorro.
Então fui até a varanda olhar a rua, senti vertigem de altura, a grade de proteção era muito baixa, era o décimo primeiro andar. Mas tive uma ideia e a vertigem passou.
Como toda mulher casada, vivo tomando remédios aos montões para aliviar momentaneamente minha insuportável carga de frustrações, Valium, Dormonid, Lexotan, Rivotril, Rohypnol e um monte de outros. Toda noite meu marido toma uma garrafa de vinho tinto durante o jantar e sou eu, que faço tudo dentro de casa, quem abre a garrafa e serve o vinho.
O meu Dormonid é de quinze miligramas, peguei seis comprimidos e dissolvi na garrafa de vinho, que abri na cozinha. Peguei também uma garrafa de champanhe para mim e levei as duas garrafas com copos para a mesa da sala de jantar e enchi as nossas duas taças.
Não sei por que mulheres e veados gostam tanto de champanhe, essa merda borbulhante, ele disse.
Encheu sua taça novamente, bebeu, outra vez encheu a taça, disse, esse bordô está uma maravilha. Logo esvaziou a garrafa. Pouco depois desmaiou.
Ah, que trabalheira, arrastar aquele corpo enxundioso até a varanda. Ele era pesado, os ovos com bacon e os queijos franceses, os embutidos, as tortas, os patês engordavam até um tísico, mesmo um daqueles magrelinhas do Nordeste.
Estava morta de cansaço quando cheguei à varanda, mas ainda tive forças para deitá-lo de barriga sobre a grade da varanda e depois agarrar suas pernas, levantá-las e impulsionar o corpo.
A queda causou um distante som oco ao bater na calçada.
Depois liguei para a polícia dizendo que o meu marido tinha bebido demais e havia caído da varanda. Acrescentei que ele era viciado em entorpecentes.
Voltei para a sala e bebi outra taça de champanhe. Adoçava a boca, antes de começar a comer o pão que o diabo amassou.
Depois, na frente do espelho, ensaiei a história que ia contar para a polícia. Seu delegado, isso aconteceu no mês passado com o morador do 1201, que também misturava bebida com calmantes, era alto e gordo como o meu marido e caiu da varanda, a grade é muito baixa.
Ele provavelmente também foi empurrado pela esposa, mas esse final eu não ia contar.
Fiz minha cara de choro e as lágrimas escorreram. É fácil chorar se a pessoa está muito feliz.

Rubem Fonseca, em Ela e Outras Mulheres

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