segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Dos três males | 2.




Volúpia: aguilhão e estaca para todos os desprezadores do corpo que vestem cilício, e amaldiçoada como “mundo” por todos os trasmundanos: pois escarnece e ludibria todos os mestres da confusão e do erro.
Volúpia: para a gentalha, o fogo lento em que é consumida; para toda madeira carcomida, para todos os trapos malcheirosos, o forno aceso e fervoroso.
Volúpia: para os corações livres, inocência e liberdade, a felicidade edênica na terra, a transbordante gratidão de todo futuro ao presente.
Volúpia: apenas para o emurchecido um adocicado veneno, mas para os de vontade leonina o grande estimulador do coração e o veneravelmente reservado vinho dos vinhos.
Volúpia: a grande imagem de felicidade para superior felicidade e suprema esperança. Pois para muitos é prometido o casamento e mais que o casamento, —
para muitos que são mais estranhos a si mesmos que o homem à mulher: — e quem compreendeu totalmente quão estranhos um ao outro são o homem e a mulher?
Volúpia: — mas quero que haja cercas em volta de meus pensamentos e também de minhas palavras: para que os porcos e entusiastas não irrompam em meus jardins! —
Ânsia de domínio: tição e açoite dos mais duros entre os duros de coração; o horrendo martírio reservado ao mais cruel; a sombria chama das fogueiras que vivem.
Ânsia de domínio: o maldoso moscardo118 imposto aos povos mais vaidosos; a escarnecedora de toda virtude incerta; que monta cada cavalo e cada orgulho.
Ânsia de domínio: o terremoto que rompe e quebra tudo que é podre e cavo; a estrondeante, punitiva destruidora de sepulcros caiados; a coruscante interrogação junto a respostas prematuras.
Ânsia de domínio: ante seu olhar o homem rasteja, se curva, se submete e se torna mais baixo do que serpente e porco: — até que finalmente o grande desprezo grita de dentro dele —,
Ânsia de domínio: a terrível professora do grande desprezo, que prega na face de cidades e reinos: “Fora contigo!” — até que de dentro deles mesmos se grita: “Fora comigo!”.
Ânsia de domínio: que, no entanto, também sobe sedutoramente aos puros e solitários e até alturas que bastam a si mesmas, ardente como um amor que sedutoramente pinta purpúreas bem-aventuranças no céu da terra.
Ânsia de domínio: mas quem chamaria “ânsia” quando o que é alto desce, desejando o poder? Em verdade, nada há de malsão e sôfrego em tal desejar e descer!
Que a altura solitária não permaneça eternamente solitária e bastando a si mesma; que a montanha chegue ao vale e os ventos da altura cheguem às baixadas: —
Oh, quem encontraria o nome certo de virtude para batizar esta ânsia? “Virtude dadivosa” — assim denominou Zaratustra um dia o inominável.
E também aconteceu então — em verdade, pela primeira vez! — que sua palavra beatificasse o egoísmo, o sadio, inteiro egoísmo que brota de uma alma poderosa: —
de uma alma poderosa, a que pertence o corpo elevado, o corpo bonito, vitorioso, animador, em redor do qual tudo se torna espelho:
O corpo flexível e convincente, o dançarino cujo símbolo e epítome é a alma que se compraz em si. O prazer-consigo120 desses corpos e almas chama a si mesmo “virtude”.
Com suas palavras sobre o que é bom e ruim, esse prazer-consigo se protege como com bosques sagrados; com os nomes de sua felicidade, bane de sua presença tudo que é desprezível.
Bane para longe de si tudo que é covarde; diz: “Ruim — isso é covarde!”. Desprezível lhe parece quem sempre está a se preocupar, lamentar, suspirar, e quem recolhe até as mínimas vantagens.
Despreza também toda sabedoria lamuriante: pois, em verdade, há também a sabedoria que floresce na escuridão, uma sabedoria de sombras noturnas: a qual sempre suspira: “Tudo é vão!”.
A desconfiança timorata vale pouco para ele, assim como todo aquele que prefere juramentos a olhares e mãos: e também toda sabedoria desconfiada demais — pois tal é a maneira das almas covardes.
Menos ainda vale para ele o obsequioso fácil, o ser canino, que imediatamente se deita de costas, o humilde; e há também sabedoria que é humilde, canina, devota, e facilmente obsequiosa.
É-lhe odioso, e até mesmo nojento, quem jamais quer se defender, quem engole escarros venenosos e olhares maus, o ser demasiado paciente, com tudo tolerante, com tudo satisfeito: pois isso é maneira de servo.
Seja alguém servil ante os deuses e os pontapés divinos ou ante os homens e as estúpidas opiniões humanas: em toda maneira de servo ele cospe, esse bem-aventurado egoísmo!
Ruim: assim chama ele a tudo que se curva e é tacanho-servil, aos submissos olhos que pestanejam, aos corações oprimidos e àquela falsa maneira indulgente que beija com lábios amplos e covardes.
E pseudossabedoria: assim chama ele a tudo que gracejam os servos, idosos e cansados; e, em especial, toda a feia, delirante, demasiado engenhosa tolice dos sacerdotes!
Os pseudossábios, porém, todos os sacerdotes, os cansados do mundo e aqueles cuja alma tem a maneira da mulher e do servo — oh, que terríveis peças pregaram desde sempre no egoísmo!
E que precisamente isto fosse considerado e chamado virtude, pregar terríveis peças no egoísmo! E “sem-ego” — assim desejariam ser, com bom motivo, todos esses covardes e aranhas-de-cruz cansados do mundo!
Mas para todos eles está chegando o dia, a transformação, a espada da justiça, o grande meio-dia: muita coisa será então revelada!
E quem proclama o Eu sadio e sagrado e o egoísmo bem-aventurado, em verdade também proclama aquilo que sabe e profetiza: “Vê, ele está chegando, ele está próximo, o grande meio-dia!”.

Assim falou Zaratustra.

Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra

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