quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Como aprendi o Português


Às vezes me perguntam como aprendi o português. Respondo geralmente que não o aprendi e provavelmente nunca hei de aprendê-lo. Mas a pergunta me evoca o meu primeiro encontro com o idioma em que, por circunstâncias de todo imprevisíveis, passei a exprimir-me com naturalidade e até a pensar.
Naquela época eu ensinava latim e italiano num ginásio de Budapeste. Uma vez por semana frequentava um café onde se reuniam meus amigos linguistas. Um deles estudava o sogdiano, outro preparava um ensaio sobre os pronomes voguis, um terceiro acabara de publicar dois grossos volumes de contos tcheremissos. Só interessados em idiomas exóticos, tinham verdadeira paixão pelas línguas difíceis e desprezavam minhas modestas excursões no domínio neolatino.
Mas, afinal, você sabe espanhol? – perguntei certo dia a um deles, perito em linguística fino-úgrica.
Ora essa! – respondeu-me.
Mas sabe mesmo? – insisti.
Ainda não experimentei – replicou altivo, como se se tratasse de andar a cavalo ou de bicicleta.
Calei-me, humilhado. Realmente o espanhol não se comparava com nenhum daqueles dialetos fabulosos. De mais a mais, era falado por um número excessivo de pessoas, e os meus amigos só apreciavam idiomas extintos ou, quando muito, falados por meia dúzia de pescadores analfabetos.
Assim, nem tive coragem de relatar-lhes que principiara a aprender o português – tanto mais que essa língua me parecia, de início, fácil demais: um desses começos de namoro em que tudo corre bem e nada faz prever as atrapalhações subsequentes.
Lembro-me ainda do dia em que o primeiro livro português me veio ter às mãos. Foi a antologiazinha As cem melhores poesias líricas da Língua Portuguesa, de Carolina Michaëlis. Possuíra outras antologias da mesma coleção: a francesa, a italiana, a espanhola. Inferi que devia haver uma portuguesa também, e mandei-a vir da Livraria Perche, de Paris.
O livrinho chegou-me às nove da manhã num dia das férias de Natal. Às dez, já eu tinha descoberto o único dicionário português existente nas livrarias de Budapeste, o de Luísa Ey, com tradução alemã. Atirei-me então às poesias com sôfrega curiosidade. Às três da tarde, o soneto “Sonho oriental”, de Antero de Quental, estava traduzido em versos húngaros; às cinco, aceito por uma revista, que o publicaria pouco depois.
De todos os escritores húngaros que eu conhecia, Desidério Kosztolányi era o único que se aventurara a abordar o estudo do português. Certa vez falou-me nesta língua, que lhe parecia alegre e doce como um idioma de passarinhos. A mim, sob seu aspecto escrito, dava-me antes a impressão de um latim falado por crianças ou velhos, de qualquer maneira gente que não tivesse dentes. Se os tivesse, como haveria perdido tantas consoantes? E olhava espantado para palavras como lua, dor, pessoa, veia, procurando apanhar o que nelas restava das palavras latinas, cheias e sonoras.
Era aliás justamente a pronúncia que me causava algum medo.
As nasais, tão numerosas, arrepiavam-me, tanto mais que a gramática, arranjada não sei onde, as cercava do maior mistério. É impossível, diziam Gaspey, Otto e Sauer, explicar a pronúncia de tais sons; a única maneira de aprendê-la era pedir a um natural do país que os pronunciasse grande número de vezes. Mas como ia eu arranjar em Budapeste um natural de Portugal? E entrei a meditar sobre enigmas fonéticos, como, p. ex., os diversos valores do x, que em húngaro nem existe e mesmo nas outras línguas não passa de uma letrinha à toa, ao passo que em português se encarnava de quatro maneiras diferentes.
Lembro-me ainda de algumas reações minhas ante os fenômenos do novo idioma. Foi com certa impaciência que acolhi ilogismos que ela me oferecia, totalmente esquecido dos que engolia sem protestos, a cada instante, na minha própria língua. Não me conformava, em particular, com o gênero feminino da palavra criança. Nem queria admitir que nomes tão franceses como chapéu ou paletó pudessem ser incorporados ao português sem mais nem menos. Mas reconhecia com alvoroço palavras cuidadosamente guardadas da velha estirpe latina e que outros idiomas românticos tinham malbaratado: lar e ônus vinham familiares, embelezados pela longa tradição. Vozes em que reencontrava vestígios da formação latina, como bebedouro e nascedouro, e mesmo horrendo e nefando, sorriam-me. Os vocábulos de origem árabe se apresentavam solenes, muito mais presos à origem do que realmente são; parecia-me até impossível que um alfaiate cortasse paletós e calças pelo modelo inglês, em vez de só fazer albornozes.
Não somente o vocabulário: fenômenos sintáticos também me provocaram reações sentimentais. A descoberta do infinitivo pessoal foi uma surpresa e abalou-me bastante o orgulho patriótico, pois julgava-o riqueza exclusiva do húngaro. Afeiçoei-me logo às formas mesoclíticas dos verbos: falar-te-ei, lembrar-nos-íamos apresentavam-me como que em corte anatômico palavras já irreparavelmente fundidas no francês ou no italiano, e faziam supor dotes de análise e síntese em todos os que as empregavam. Admirei também a sábia economia que se manifestava em expressões compostas de dois advérbios, como demorada e pacientemente, só imagináveis numa língua que teimasse em não se afastar de suas raízes etimológicas.
Aos poucos, sem ainda saber ler em voz alta, ia adivinhando no português uma melodia nova e diferente, e continuava familiarizando-me com o volumezinho das 100 poesias. Traduzi “Os cinco sentidos”, de Almeida Garrett, a romança da “Nau Catarineta”, e um punhado de quadras, das quais a começada por “O anel que tu me deste” ainda hoje me parece um milagre de simplicidade patética.
O problema consistia em arranjar outros livros. De Estrasburgo consegui um exemplar de Os Lusíadas, na Biblioteca Românica. Graças a uma boa tradução húngara e as reminiscências de Virgílio e de Tasso, pude tê-los sem grande dificuldade. Mas ainda não tinha conseguido um texto contemporâneo, um documento de português vivo.
Foi quando um dos livreiros, alertado por mim, desensebou um volume roto e sujo, de um autor português moderno – Samuel Ribeiro, se bem me lembro. Aí a coisa ficou ruim, pois logo na primeira página apareceram vinte palavras não registradas por Luísa Ey. Era uma história rústica, provavelmente meio regional, e o autor parecia divertir-se em chamar os bichos e as plantas pelos seus lindos mas incompreensíveis nomes alentejanos ou minhotos. Alguém, ao saber do meu embaraço, me apresentou a um funcionário do Consulado do Brasil a quem mostrei a página rebelde. Examinou-a com atenção e declarou-me que ou aquilo não era português, ou então no Brasil se falava outra língua. Em compensação, pronunciou para mim várias nasais, que procurei imitar sem muito êxito.
Deixei de lado o livro de Samuel Ribeiro e pus-me a ler poetas brasileiros.
Meu primeiro livro brasileiro foi uma Antologia de poetas paulistas, arranjada por intermédio de uma livraria húngara de São Paulo, cujo endereço obtivera por acaso. Lembro-me ainda desse volumezinho, de apresentação péssima, muito mal-organizado (e que depois nunca mais consegui encontrar aqui no Brasil). Continha os retratos horrorosos de trinta poetas de São Paulo e uma poesia de cada um deles, geralmente um soneto. As dificuldades começavam pelo título, pois o Wörterbuch de Luísa Ey, naturalmente, não continha a palavra paulista.
Se não cheguei a entender a maioria dos poemas, adivinhei o sentido de alguns e acabei traduzindo um poemeto de Correia Júnior, que publiquei numa revista. Ao reler a minha versão, alguns anos mais tarde, já aqui no Brasil, descobri humilhado um enorme contrassenso. O poeta falava da rede na qual descansava a aguardar os sonhos; pois eu, que nunca tinha visto semelhante objeto, julguei tratar-se de uma imagem poética e pus no texto húngaro “a rede dos sonhos tecida pela imaginação”.
Em seguida “adivinhei” e verti mais alguns poemas do livro. Salvo uma única exceção, eram todos, como mais tarde verifiquei com espanto, de autores que no Rio de Janeiro ninguém conhecia. Um acaso fez cair uma dessas traduções nas mãos do então cônsul do Brasil em Budapeste, que me chamou, me deu um volume de Bilac, outro de Vicente de Carvalho e três números antigos do Correio da Manhã.
A este jornal mandei, com breve carta, um recorte da “primeira poesia brasileira vertida para o húngaro”. Nunca recebi resposta a essa carta, mas um dia, com grande surpresa minha, chegou-me um envelope volumoso coberto de selos exóticos e cheio dos poemas, ainda inéditos, de um jovem poeta carioca, o qual, depois de ter lido no Correio um tópico a respeito de minha esquisita mania, me julgara a pessoa mais idônea para emitir a primeira opinião acerca de suas composições clandestinas.
Essa mensagem foi seguida de outras, escritas por outros leitores do jornal, todos poetas. Daí a pouco recebia regularmente farta correspondência do Brasil: cartas com versos datilografados ou recortados de jornais, revistas, livros. Estes me chegavam sem nenhum sistema, mandados por algumas repartições, por amigos e desconhecidos. Havia entre eles uns valiosos, outros regulares e alguns fracos. Mas faltava-me o fio condutor para me orientar naquela multidão de nomes novos e estabelecer uma escala certa de valores.
De certos poetas, tradicionalistas na expressão e na forma, não sabia se eram de 1850 ou de hoje. Ao mesmo tempo, tomava por originalíssimos alguns poetas de 15 anos (de quem recebia os inéditos), por lhes desconhecer os modelos. Assim, quando afinal obtive um volume de Jorge de Lima, a obra deste grande poeta não me deu mais a surpresa feliz de uma descoberta, pois já conhecera vários de seus discípulos.
Ao lado dessas incertezas, havia as da língua, pois ainda continuava com o dicionariozinho da sra. Ey, e um português-francês, não muito melhor, de Simões da Fonseca, ambos feitos na Europa, e que por isso ignoravam totalmente os brasileirismos. Aí tinha de recorrer de novo ao sistema arriscado das conjecturas.
Nem todas eram fáceis. No “Acalanto do seringueiro”, de Mário de Andrade, o uirapuru só podia ser pássaro. Mas quanto tempo não levei para atinar que o cabra resistente do mesmo poema não designava bicho, mas homem.
Noutros casos, a falta de noção equivalente no meio centro-europeu tornava a tradução quase impossível. Tive de dar tratos à bola para fabricar um termo composto de três palavras (kaucsukfacsapoló) para verter o próprio nome do seringueiro. Não me atrevi a empregá-lo senão depois de experimentá-lo em vários poetas amigos e verificar-lhes a reação favorável.
O que, porém, me atrapalhava sobretudo eram as palavras mais corriqueiras, mais simples. Os sábios glotologistas do meu café, embora com relutância, tiveram de concordar comigo quando lhes mostrei que uma das palavras brasileiras mais difíceis de traduzir e encaixar num verso húngaro era dezembro. O nosso december, etimologicamente idêntico, mas que evocava noções de gelo, neve e miséria, não poderia sugerir a nenhum leitor húngaro a imagem de um Natal carioca, tórrido e abafado. Ou então, que significava a palavra Nordeste? Foi necessária uma longa carta de Ribeiro Couto (então cônsul na Holanda) para dar-me uma ideia aproximativa do complexo sentido geográfico, antropológico, sociológico e, sobretudo, poético, dessa denominação. Com sua compreensiva inteligência, o poeta de Província esboçou um sucinto retrato espiritual da região nordestina, da qual, à falta de outra documentação, me desenhou um mapa esquemático. Tive menos sorte com um jovem poeta esquerdista em cujos poemas encontrara inúmeras alusões aos morros cariocas. Pensando que eu não entendesse a palavra, respondeu à minha consulta com uma lista de sinônimos: colina, outeiro etc. Só depois de nova troca de cartas cheguei a entender que, contrariamente ao que se dava na minha cidade, onde os morros, cobertos de luxuosos palacetes, só abrigavam gente rica, no Rio eles eram sinônimos de favelas, isto é, “conjuntos de habitações populares toscamente construídas e desprovidas de recursos higiênicos”.
A publicação em jornais e revistas de algumas dessas traduções de poesias brasileiras motivou episódios curiosos. Numa das minhas aulas de latim, por exemplo, um aluno me pediu, no meio da expectativa zombeteira de seus colegas, que lhe explicasse um estranho poema lido por ele na véspera e pôs-se a recitar “No meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade. Embora não gostasse de interromper as minhas aulas, dessa vez não resisti à tentação e citei outros versos do poeta. Falei da iconoclastia necessária da poesia moderna, da salutar reação ao “poético” estereotipado, do valor profundo das sensações primitivas e virgens; mostrei como as exigências do lirismo e da lógica são diferentes; insisti sobre o poder emocional do elemento grotesco; disse da importância da colaboração do leitor com o poeta. A explicação transformara-se, nessa altura, em animada conversa, e por fim meus alunos concordaram comigo em que cada época tinha a sua expressão literária, diversa das anteriores. Chegados a esse resultado, pudemos voltar à leitura de Horácio. Já então os meus discípulos leram com interesse muito maior a ode em que o poeta romano, considerado até então por muitos deles um versificador de lugares-comuns, se desculpava da ousadia revolucionária com que introduzira na literatura latina formas e expressões “nunca antes divulgadas”.
O aparecimento das traduções num volume intitulado Mensagem do Brasil foi acolhido pela crítica com o interesse que o momento permitia. (Estávamos em agosto de 1939.) Pela primeira vez na Europa Central liam-se versos brasileiros e se podia entrever a existência no Brasil, até então só conhecido como produtor de café, de uma civilização digna de estudo e mesmo de admiração. O crítico Jorge Bálint – que mais tarde os nazistas haviam de assassinar – deu a seu artigo este título: “O Brasil chegou-se para mais perto”.
Foi essa, realmente, a minha impressão durante três dias. No quarto dia, os tanques alemães cruzaram a fronteira da Polônia. Uma cortina de fumaça passou a esconder o Brasil, a poesia, a alegria de viver.
Entretanto, ao cabo de 15 meses, cujos sofrimentos e angústias não cabem relatar aqui, lá estava eu de malas prontas para conhecer o Brasil de perto. A viagem tinha de ser feita através de Portugal, única saída da Europa já em chamas. Rumei para Lisboa com todas as preocupações do exilado, mas algo consolado pela interessante experiência linguística à minha espera. Que mal me podia acontecer, se já conhecia as formas mesoclíticas e o infinito pessoal?
Sofri, porém, decepção tremenda. Passei seis semanas em Lisboa sem que conseguisse entender patavina da língua falada. Pegava do jornal e compreendia-o perfeitamente; o porteiro do hotel ou o garçom do café diziam três palavras, e eu me via outra vez no mato sem cachorro. Humilhação ainda maior: os intelectuais portugueses, aos quais fui apresentado, depois de uma tentativa frustrada de falarem a sua língua comigo, recorreram ao francês. Assisti à representação de uma peça de teatro (de Carlos Selvagem, se bem me lembro), e saí tonto, sem ter compreendido o enredo; a uma aula de colégio, sem saber se os alunos tinham respondido bem ou mal; a uma defesa de tese na Faculdade de Filosofia, sem descobrir até o fim qual fora o assunto focalizado pelo candidato. Que diriam os filólogos de Budapeste, se me vissem em tais apuros?
Durante a minha permanência na capital portuguesa costumava tomar diariamente determinado bonde e saltar no mesmo ponto, onde o mesmo condutor lançava o mesmo grito. Sentava-me perto do homem, apurava os ouvidos para entendê-lo, tudo em vão. Poderia perguntar, é claro, mas não seria fair play: preferia saltar envergonhado e infeliz, até que, na véspera da minha partida, veio a revelação. O condutor gritava era “Restauradores”; apenas, suprimia três das vogais da palavra, carregando nos rr e sibilando os ss. Fui correndo verificar na placa da esquina: tinha acertado! Mas já era tarde. No dia seguinte embarquei no Cabo de Hornos com destino ao Rio de Janeiro, atormentado por negros pressentimentos.
Cheguei uns 20 dias depois. Que alívio logo de entrada! O Brasil recebia-me com uma linguagem clara, sem mistérios. Ainda não desembarcara, e já não perdia nenhuma das palavras do carregador, que, em compensação, perdeu uma das minhas malas. Entendi igualmente o funcionário da alfândega; e, de tão satisfeito, não lhe rebati a surpreendente afirmação de que o português e o húngaro eram línguas irmãs. O deslumbramento continuou na rua, no primeiro táxi, no hotel. O idioma que eu aprendera em Budapeste era mesmo o português!
1944 – 194

Paulo Rónai, em Como aprendi o português e outras aventuras

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